“As primeiras vacas que foram à Bahia, levaram-nas de Cabo Verde e depois de Pernambuco, as quais se dão de feição que parem cada ano e não deixam nunca de parir por velhas; as novilhas como são de ano esperam o touro, e aos dois anos vêm paridas, pelo que acontece muitas vezes mamar o bezerro na novilha e a novilha na vaca juntamente, o que também se vê nas éguas, cabras, ovelhas e porcas;…” (Souza, 1974:83).

Nossos sertões certamente não foram letais para o gado europeu como o ambiente das colônias do continente africano, onde os animais sucumbiram aos inúmeros parasitas e doenças. A respeito da adaptação dos primeiros bovinos ao ambiente brasileiro, Gabriel Soares de Souza (op.cit:83) descreveu vacas “…muito gordas e (que) dão muito leite, de que se faz muita manteiga e as mais coisas de leite que se fazem em Espanha”.

A introdução do gado em terras recém-descobertas assegurou o abastecimento dos primeiros engenhos mas, sobretudo, funcionou como meio de ocupação e avanço sobre o território. Como atestou Capistrano de Abreu (Morais, 2009), as ‘indígnas’ condições dos portugueses que chegaram ao Brasil e se viram forçados a comer os alimentos da terra e tomar as índias por mancebas impunham que, com eles, viessem também suas famílias, bois, cavalos e sementes.

Em 1549, a caravela Galga trouxe bois, carneiros, cabras e cavalos de Cabo Verde e dos Açores para a sede do Governo Geral, em Salvador. Daí em diante, a Coroa Portuguesa passaria a enviar remessas anuais de gado rústico e mestiço, destinados ao trabalho nos engenhos de açúcar, arado e tração. No ano seguinte,
Garcia d’Ávila, que chegou ao Brasil acompanhando o primeiro Governador-Geral, Tomé de Souza, negociou quatro vacas e organizou a primeira ‘sociedade pastoril’. Dois anos depois, sua primeira ‘quinta’ já não tinha espaço suficiente para as duzentas cabeças de gado, porcas, cabras e éguas. Adquiriu novas terras, onde rebanhos desceriam para os prados sem fim’ à beira-mar, para além de Itapoã. Segundo Calmon (1958), tornou-se um dos homens mais ricos de Salvador, sem saber ao certo quanto gado criado solto possuía, além dos seus dez currais.

Os rebanhos das extensas propriedades rurais, às margens do Rio São Francisco, conhecido como rio dos Currais, abasteciam a população do litoral da Bahia ao Maranhão, e de Minas Gerais. Entre 1583 e 1590, o Padre Cardim visitou engenhos de açúcar que o surpreenderam pelo luxo e contraste em relação à realidade da colônia. Na Bahia, assim como em Pernambuco, onde se concentravam os grandes engenhos, ele encontrou uma ‘terra farta de mantimentos, carnes de vaca, porco, galinha, ovelhas e outras criações’. (Cardim, 1980:144 Apud. Ribeiro, 2006:169)

De pontos estratégicos do litoral, no Nordeste (Bahia e Pernambuco), no Rio de Janeiro e no sul do Brasil, os rebanhos bovinos se multiplicaram e se dispersaram pelo território. Essa dinâmica em direção aos ‘sertões’, Velden (2014) definiu como um vigoroso evento histórico protagonizado por grandes ruminantes, ameríndios e colonizadores.

Como teria se dado a ocupação de áreas tão extensas, distantes do litoral, incultas e longínquas, de condições ambientais tão adversas, sem a presença do boi? “O sertão foi aberto com o som das boiadas e berrantes, troncos caindo, solo amassado, arbustos queimados, chocalhos soando, chifres estalando, animais mugindo e homens cantando.” (Morais, 2009:27).

Já nos primeiros núcleos de ocupação, o boi forneceu força motriz, abasteceu com carne e couro as proximidades dos engenhos e, mais tarde, dos núcleos de mineração, movimentando uma atividade econômica considerada secundária, porém essencial à estrutura local. Gilberto Freire (1985) o definiu, juntamente com o escravo, como alicerces vivos da civilização do açúcar.

Imagem: Engenho de açúcar  (Rugendas, 1835). Detalhe e edição digital Ana Lucia Camphora, 2017.