Embora a doutrina cooperativista tenha origem bem mais remota, as cooperativas, enquanto seu instrumento, só se organizaram com êxito após o advento da revolução industrial na Europa, em meados do século XIX.

Roberto Rodrigues

O que determinou esse fato? Foi a exclusão social. Tendo perdido sua fonte de renda com a instalação das ações e tecelagens, os tecelões que operavam teares simples em suas casas trataram de unir-se com o objetivo de se ajudarem mutuamente em suas necessidades básicas de consumo. Tal constatação explicita uma característica prática do cooperativismo: ele reduz a exclusão social, oferecendo alternativas de renda ao cooperado. Esse feito está implícito na própria de nição de cooperativismo: é a doutrina que visa corrigir o social através do econômico.

Terceira via

O sucesso alcançado pelos primeiros associados, em Rochdale-Inglaterra, logo ganhou espaço em outras atividades econômicas e socioculturais, espalhando-se pelo mundo todo como uma brisa libertadora.

E ganhou o apelido de “terceira via” para o desenvolvimento socioeconômico, entre o capitalismo e o socialismo. Com o tempo, toda e qualquer atividade econômica rural e urbana encontrou no cooperativismo uma solução inclusiva. E era comum se imaginar a representação grá ca do movimento como um rio correndo entre duas margens, o capitalismo e o socialismo, rumo à foz do bem-estar coletivo.

Por outro lado, o avanço tecnológico empurrado pelo capital intensivo foi gerando as grandes corporações industriais e nanceiras que concentram a riqueza. E as cooperativas também se transformaram em empresas mitigadoras dessa concentração, agregando valor às matérias-primas e permitindo às pessoas comuns acessarem os mercados mais so sticados.

Ora, exclusão social e concentração da riqueza não são propriamente os melhores instrumentos de paz. Ao contrário, multidões de excluídos ou de miseráveis se transformam em agentes de instabilidade social. Portanto, o cooperativismo terminou sendo identi cado como um promotor e defensor da paz.

E seguiu se expandido até que, no nal dos anos 80 do século passado, já sob a égide da globalidade econômica, caiu o muro de Berlim. O duro golpe então sofrido pelo socialismo mundial também afetou o cooperativismo. Até porque o liberalismo varreu o planeta todo, alterando o capitalismo. Ora, com o esmaecimento da primeira e da segunda vias, não havia mais como dizer que o cooperativismo era a terceira. Uma grande perplexidade tomou as lideranças do movimento, até porque as cooperativas passaram a ser mais atacadas pelas empresas convencionais por causa da concorrência que se instalara com o crescimento das primeiras.

E, sob a coordenação da Aliança Cooperativa Internacional, o mundo todo iniciou uma longa e profunda discussão, sobre os princípios e a própria identidade do movimento.

Aqui cabe uma relevante reflexão.

À medida que as cooperativas iam crescendo e ocupando espaços nas diferentes atividades econômicas durante as primeiras décadas de sua existência, interesses e empresas por elas contrariados trataram de combater o movimento ameaçador e, através de lobbies junto a governos e à própria sociedade em geral, buscaram frear seu avanço, seja por meio de legislações limitantes, seja por mecanismos scais e tributários não isonômicos.

A busca da defesa

Isso fez com que as cooperativas buscassem sua defesa com a instituição de organizações regionais e nacionais, até que, em 1895, foi criada a ACI, já referida.

Com o tempo, essa gigantesca instituição ganhou até mesmo a condição de órgão consultivo das Nações Unidas. É o organismo mundial que preserva e difunde os princípios e valores da cooperação e nucleia as entidades de representação setoriais ou nacionais, hoje sediada em Bruxelas e com Conselhos regionais em cada Continente. A ACI tem sido um instrumento super valioso para defender cooperativas no mundo todo. Portanto, as cooperativas cuidam dos cooperados, em cada país há uma organização nacional que as defende e no mundo a ACI se bate por todos.

Essa reflexão é interessante para retomar a narrativa anterior. Ampla discussão global foi realizada sob a coordenação da ACI ante a inquietação derivada da queda do muro de Berlim. Já então havia em todo o mundo perto de um bilhão de pessoas liadas a algum tipo de cooperativa. Se cada um desses associados tivesse três dependentes, seriam 4 bilhões de cidadãos ligados direta ou indiretamente ao movimento, sem dúvida o maior ou um dos maiores contingentes humanos unidos por uma única doutrina. Através de seus líderes, esse gigantesco “corpo místico” rede niu os rumos do cooperativismo sob a nova realidade socioeconômica global em um inesquecível congresso realizado em ns de 1995 (no centenário da ACI), na Inglaterra, bem pertinho do berço de Rochdale. E lá foi rati cada a dicotomia social e econômica da doutrina com a manutenção e aperfeiçoamento dos princípios preexistente, mas foi criado um novo princípio, o sétimo, que mexeu com o compromisso de cada cooperativa: o da preocupação com a comunidade. Em outras palavras, esse novo princípio consolidou ainda mais a diferença entre uma cooperativa e uma empresa convencional, na medida em que só a primeira se preocupa com o bem-estar daqueles que vivem nos seus arredores, não interessando se são associados ou não. Com tal rede nição, a representação grá ca de cooperativismo, antes um rio uindo entre as margens do capitalismo e do socialismo, ganhou um upgrade: passou a ser uma ponte unindo outras margens. Uma é o mercado, onde as cooperativas estão inseridas de forma competitiva e e ciente, com direção pro ssional e focada, prestando os serviços necessários para que a outra margem seja alcançada pela tal ponte, exatamente o bem-estar de toda gente. E é nesse contexto que, em quase todos os países do mundo, existem cooperativas trabalhando com um conceito etéreo, o de que o mercado sozinho não gera felicidade coletiva.

O reconhecimento da ONU

Esse trabalho todo fez com que a ONU, organismo multilateral encarregado da manutenção da paz universal, reconhecesse o relevante papel das cooperativas na inclusão social e na mitigação da concentração da riqueza, como já foi dito. E, como forma de manifestar esse reconhecimento, designou o ano de 2012 como o Ano Internacional das Cooperativas. A partir dessa importante designação, a ACI de niu o rumo que todas as entidades de representação em cada país deveria doravante seguir, com três temas centrais:

  • Trabalhar pelo aumento do número de cooperativas e de cooperados, para assim ampliar o movimento;
  • Trabalhar para que fossem estabelecidas em cada país legislações modernas, que dessem às cooperativas tratamento isonômico em relação às empresas não cooperativas do mesmo setor;
  • Buscar recursos nanceiros para ampliar a presença das cooperativas nos mercados.

A representação o cial no Brasil

No Brasil, a entidade que representa o cialmente o movimento é a Organização das Cooperativas Brasileiras, que vem fazendo um excelente trabalho para a modernização da gestão e da governança em cada cooperativa, até para atender aos objetivos de sua criação, em 1969, antes mesmo da proclamação da Lei Cooperativa em dezembro de 1971 e da qual toda a parcela não afetada pela Constituição de 1988 segue vigendo. Esse trabalho encontra respaldo na Frente Parlamentar do Cooperativismo, suprapartidária, composta por mais de 200 deputados e senadores, completamente sintonizados com o desiderato da OCB de promoção do modelo associativo sob o conceito de que a cooperativa é o braço econômico da organização social. Sob os auspícios da OCB surgiu o S do cooperativismo, o SESCOOP, instituição que vem investindo na formação e treinamento de recursos humanos para todas as áreas de atuação das coops. Também surgiram as cooperativas de crédito cujo conjunto atual já equivale à sexta força nanceira nacional. Apoiada pela Frente Parlamentar, a OCB tem avançado em diplomas legais essenciais para o cumprimento dos dispositivos constitucionais referentes ao setor, entre os quais se destaca o da autogestão.

Mas há um artigo na nova Constituição Brasileira que estabelece a liberdade de organi zação e de liação a entidades de representação. Com base nesse dispositivo, partidos políticos e entidades que consideram muito liberal a atuação da OCB querem acabar com a determinação hoje legal de que toda e qualquer cooperativa seja liada ao Sistema OCB. Procuram assim destruir a unicidade de representação. Em outras palavras, querem enfraquecer quem defende as coops para então atacá-las mais facilmente. Nada novo: competição é assim mesmo.

Uma doutrina

Mas cooperativismo é uma doutrina da qual as cooperativas são o instrumento. Mal comparando, a Igreja é o instrumento do Cristianismo. Dividir a Igreja significa um novo Cisma que acaba machucando ou até destruindo a doutrina cristã, o que eventualmente pode servir a outros interesses: imaginemos ter 3 Papas falando ao mesmo tempo. Dividir a representação cooperativista pode fazer o mesmo efeito socioeconômico, matando as cooperativas e sua competitividade. Isso não interessa a nenhuma nação democrática que defenda a paz, de modo que a preservação da unicidade de representação é muito importante.

Mas também não se deve imaginar que cooperativa é uma panaceia para tudo, desde que está presente em todos os setores de atividade econômica na maior parte dos países do mundo. Para uma cooperativa dar certo, pelo menos três precondições são essenciais:

  • Tem que ser necessária: os futuros cooperados precisam ter convicção de que não poderão sobreviver em sua atividade sem se juntarem em uma coop;
  • Ter viabilidade econômica: ela é uma empresa. Baseada em valores e princípios, mas tem que ser viável, dando resultados positivos ao prestar serviços de interesse dos cooperados.
  • Ter liderança capaz de conduzir o projeto.

Se uma dessas condições faltar, é nula a chance de uma cooperativa avançar.

Dividir a representação cooperativista pode matar as cooperativas e sua competitividade. Isso não interessa a nenhuma nação democrática que defenda a paz.

Seja como for, o cooperativismo segue sendo a doutrina inclusiva e redutora das grandes diferenças econômicas. E segue assim defendendo a paz. É chegada a hora de esse extraordinário movimento receber o Prêmio Nobel da Paz, assim como já receberam modelos semelhantes, como o Médicos Sem Fronteiras. Para tanto, sob a liderança da ACI, cada cooperativa e sua respectiva entidade representativa, em todos os países, deve se associar a um programa global de convencimento de seus governos e parlamentos do que seja o papel do cooperativismo na defesa da democracia e da paz. Não será um objetivo facilmente alcançável, mas sem dúvida é viável. E seu sucesso dependerá fortemente de um poderoso programa de propaganda e marketing sobre a cooperação. A nal, os exemplos a exibir são maravilhosos.

Resta uma questão: com certa frequência surgem denúncias de corrupção em cooperativas, do que se servem seus adversários para desconstruirem a doutrina. Ninguém denúncia o Sistema Financeiro se dirigentes de um Banco roubam: prendem e julgam os culpados e fim. Assim deve ser também no caso das coops. Ou como na Igreja: não é porque existem padres malandros que o Cristianismo ou a Igreja não prestam. Devem ser punidos os culpados as pessoas que erram e não a Doutrina e seu Instrumento. Tal constatação reforça de maneira cabal a necessidade da autogestão funcionar bem: só ela poderá separar o joio do trigo, eliminando os maus cooperados, maus funcionários, maus dirigentes e líderes, de forma a “limpar” o movimento, permitindo a sua identi cação com os objetivos doutrinários, de defesa da paz.