A legislação brasileira no que tange a alimentos de origem animal determina que é obrigatória a sua prévia inspeção higiênica, sanitária e tecnológica antes de serem ofertados ao consumidor, sendo esta atividade de fiscalização de caráter público e executada em três níveis municipal, estadual e federal.

O eminente e saudoso Professor Miguel Cione Pardi, em sua publicação sob o título “Memória da Inspeção Sanitária e Industrial de Produtos de Origem Animal no Brasil: O Serviço de Inspeção Federal – SIF”, remonta ao ano de 1915 quando, através do Decreto 11.462, foi expedido o Regulamento do novo órgão denominado “Serviço de Inspecção de Fábricas de Productos Animais”, subordinado, à época, ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio valendo como regulamentação específica da inspeção sanitária de carnes.

A obrigatoriedade da prévia inspeção foi estabelecida a partir de 1950 através da Lei 1.283 sancionada em 18 de dezembro daquele ano, portanto há 66 anos, definindo que seria exercida sob o ponto de vista industrial e sanitário, abrangendo todos os produtos de origem animal, comestíveis e não comestíveis.

Competentes para realizar a inspeção

Esta mesma lei definia como competentes para realizar a fiscalização o Ministério da Agricultura, as Secretarias ou Departamentos de Agricultura dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal e os órgãos de Saúde Pública dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, com a ressalva da proibição da duplicidade de fiscalização. Esta lei foi regulamentada pelo Decreto 30.691 de 29 de março de 1952, instituindo o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA), para vigorar em todo o território nacional e que, com algumas pequenas alterações ao longo dos anos, ainda constitui-se na base de atuação do Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e espelho para os regulamentos estaduais e municipais.

A iniciativa empresarial na área de alimentos e especificamente os de origem animal, amparada pela moderna legislação à época, permitiu um despontar da cadeia produtiva do agronegócio de forma a atender ao crescente consumo interno e a demanda pelo comércio internacional.

Exportações

Com respeito às exportações, já havia normas específicas que o Brasil obrigava-se a cumprir por exigências dos importadores e que, a cada dia, ampliavam as possibilidades de modernização do parque industrial na busca de melhores mercados internacionais. Entretanto, o mesmo não acontecia no mercado interno onde a desorganização era evidente e o mercado de produtos sem qualquer fiscalização, clandestinos, cada vez mais aumentava e se acentuava acarretando graves riscos para a saúde pública e a economia.

Situação caótica

Em 6 de junho de 1970, em função do total descalabro na oferta de produtos de origem animal para a população do Estado de São Paulo, a Revista Visão publicou um artigo sob a orientação dos Médicos Veterinários Nelson Garcia de Moraes Forjaz, Diretor Técnico do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo e José Christovam Santos do Ministério da Agricultura, sob o título “Ameaça na Carne” descrevendo a situação caótica e sem qualquer controle, da carne distribuída naquela Estado e por semelhança em todo o Brasil.

Lei da federalização

Como tentativa de solucionar esta grave questão, o Ministério da Agricultura, através da Lei 5.760 de 30 de dezembro de 1971, instituiu a denominada lei da federalização, definindo para si a exclusiva competência para a execução da fiscalização dos produtos de origem animal no Brasil.

Esta mudança radical nos parâmetros definidos desde 1950 constituiu-se em uma das realizações mais notáveis havidas no Brasil, tendo o eminente Professor Ruy Brandão Caldas, seu maior artífice segundo o Professor Miguel Cione Pardi, considerado em sua tese de Livre Docência, como a “maior campanha de saneamento já encetada no campo de alimentos no Brasil”, havendo a citação de estar entre as maiores revoluções no campo da saúde pública já ocorridas no mundo.

Este trabalho hercúleo começou pelo Rio Grande do Sul, Estado natal do Ministro da Agricultura à época, Luiz Fernando Cirne Lima, maior incentivador do processo de federalização e os seus frutos já começavam a aparecer na qualidade dos alimentos ofertados à população.

Entretanto, com o decorrer dos trabalhos, a organização do sistema passou a sofrer forte pressão contrária de entidades de classe marginais e de industriais que tiveram os seus interesses contrariados pela nova legislação, com a participação ativa de políticos, também contrariados em seus interesses, aliado ao fato de não se interessarem por entender o alcance para o Brasil das medidas adotadas, impedindo a continuidade de tão importante ato.

Estas pressões culminaram com a edição da Lei 7.889 de 23 de novembro de 1989, retornando o país aos mesmos preceitos da Lei 1.283, redistribuindo as atividades de inspeção para os três níveis federal, estadual e municipal, em função da área de comercialização dos produtos fabricados pelos estabelecimentos industriais.

A partir daí, o Ministério da Agricultura passou a ocupar-se da inspeção dos produtos, motivo de trânsito interestadual e principalmente voltando as suas atenções para o comércio internacional de grandes perspectivas para o país.

Desorganização total

Como muitos Estados e principalmente municípios não tinham e nem tiveram interesse em desenvolver ao longo dos anos a estrutura administrativa e de pessoal técnico para assumirem tão relevante atividade e o Ministério da Agricultura voltando a sua atenção para o mercado internacional, todo o ganho em termos de saúde pública conseguido através do processo de federalização foi perdido, voltando às condições de total desorganização do sistema anterior a 1971, o que perdura até hoje em grande parte do Brasil, independente de permanecer em vigência a obrigatoriedade da inspeção em todos os estabelecimentos de produtos de origem animal.

Através da Lei 8.171 de 1991, o poder público estabeleceu as ações e instrumentos da política agrícola, relativamente às atividades agropecuárias, agroindustriais e de planejamento das atividades pesqueira e florestal que posteriormente teve dois artigos alterados pela Lei 9.712 de 1998, criando o Sistema Único de Atenção à Sanidade Agropecuária – SUASA, em muito semelhante ao Sistema Único de Saúde – SUS.

Inspeção deficiente

As atividades de inspeção executadas de forma deficiente por cada um dos três níveis de governo, sob o aspecto de estrutura administrativa, corpo técnico e metodologia de ações continuavam totalmente divorciadas entre si, como se o consumidor dos produtos fiscalizados por cada uma delas fosse diferente e os requisitos de ordem sanitária, tecnológica e higiênica pudessem também o ser.

Ao regulamentar o SUASA através do Decreto 5.741 de março de 2006, foi constituído o Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos e Insumos Agropecuários – SISBI, como tentativa de equiparar tecnicamente os três níveis de fiscalização, sendo o acesso ao sistema de forma voluntária. Os Estados e Municípios que desejassem aderir, deveriam ter todas as suas estruturas de inspeção, equivalentes a do Serviço de Inspeção Federal, condição avaliada através de auditoria realizada pelos Auditores Fiscais Federais Agropecuários do Serviço de Inspeção Federal.

Independente destas mudanças, o critério da inspeção ser permanente prevalecia, até que, através do Decreto 8.444 de 6 de maio de 2015, foi modificado o Artigo 11 do RIISPOA de 1952, acabando com a consagrada inspeção permanente em todos os estabelecimentos de produtos de origem animal, mantendo esta obrigatoriedade apenas para os estabelecimentos de abate, novo retrocesso no importante e fundamental oferecimento de alimentos de qualidade para o consumidor.

Mudanças desastrosas

Como que para coroar negativamente tantas mudanças desastrosas com sérios prejuízos para a saúde do consumidor, alguns Estados instituíram de forma oficiosa, ao arrepio e em contraponto à legislação maior, a chamada inspeção privada, cuja similaridade não encontra parâmetro em lugar nenhum do mundo, confrontando inclusive com as orientações da Organização Internacional de Saúde Animal (OIE), a qual o Brasil é liado, que define como princípios fundamentais para os serviços oficiais veterinários a qualificação profissional, independência, imparcialidade, integridade, objetividade, legislação e organização do serviço. Com respeito à independência, recomenda que o pessoal dos serviços veterinários não estejam submetidos a nenhuma pressão comercial, financeira, hierárquica, política ou de outro tipo que possa influir em seu juízo e suas decisões.