Uma oportunidade de negócio para um produto com ação terapêutica comprovada

Kefir é um leite fermentado produzido pela ação de bactérias e leveduras que existem em associação simbiótica e compõem os grãos de kefir. A produção artesanal da bebida kefir fundamenta-se na tradição dos povos do Cáucaso, difundida para outras partes do mundo, a partir no final do século passado, integrando suas indicações nutricionais e terapêuticas ao cotidiano alimentar atual. O grande número de microrganismos presentes no kefir, a variabilidade de possíveis compostos bioativos e os vários benefícios associados ao seu consumo fazem com que esta bebida seja considerada um probiótico natural, designado como o iogurte do século XXI. Vários estudos têm demonstrado que o kefir e seus constituintes possuem atividade antimicrobiana, antitumoral, anticarcinogênica, imunomoduladora, melhora da digestão da lactose, entre outras.

Origem

A palavra kefir é derivada do turco keyif, que significa “sentir-se bem” após sua ingestão. A bebida é originária das montanhas do Cáucaso, e é um produto tradicional e altamente consumido na Europa Oriental, Rússia e sudoeste Asiático. Atualmente, relata-se um aumento de seu consumo em vários países, devido às suas propriedades sensoriais únicas e sua longa história associada aos efeitos benéficos à saúde humana.

Controle microbiológico das amostras

No Brasil

No Brasil, o conhecimento desta bebida, bem como os benefícios da inclusão deste alimento probiótico na dieta, não são muito difundidos, e sua fabricação é exclusivamente artesanal.

O kefir é caracterizado por sabor e aroma distintos, típicos de levedura e um efeito efervescente sentido na boca.

Os principais produtos da fermentação no kefir são ácido lático e CO2, que conferem viscosidade e acidez. Compostos minoritários também podem ser encontrados, incluindo, etanol, diacetil, acetaldeído, aminoácidos livres e acetato, contribuindo para a composição do sabor e aroma. Esta bebida difere de outros produtos lácteos fermentados porque não é resultado da atividade metabólica de uma única espécie.

Grãos

Os grãos desempenham papel de cultura fermentadora durante a produção do kefir e são recuperados após o processo de por coagem do leite. Estes grãos são compostos por uma microbiota imobilizada em uma matriz de polissacarídeo e proteína, onde várias espécies de bactérias e leveduras coexistem em associação simbiótica. Neste ecossistema, há uma população de microrganismos relativamente estável, que interage e influencia outros membros da comunidade. Esta população determina a síntese de metabólitos bioativos, que são essenciais para o crescimento dos grãos e inibição de microrganismos, como microrganismos nocivos e contaminantes do alimento.

Os grãos de kefir variam em tamanho de 0,3 a 3,0 cm de diâmetro, são caracterizados por uma superfície irregular, multi-lobular, unida por uma seção central única, e sua cor varia do branco ao branco amarelado (Figura 1). Os grãos são elásticos, e possuem textura viscosa e firme.

Grãos de Kefir

Produção

Há três maneiras principais de produção do kefir: (1) artesanal; (2) comercial pelo método russo e (3) comercial com culturas puras.

Outros substratos também podem ser utilizados como leite de outras espécies animais, leite de coco, leite de soja, suco de frutas e solução de açúcar e melaço.

A produção artesanal tradicional envolve a inoculação do leite com uma quantidade variável de grãos, e a fermentação por um período de entre 18 e 24 horas à de temperatura de 25ºC. No final da fermentação os grãos são peneirados e podem ser utilizados para uma nova fermentação, ou conservados durante um a sete dias em leite fresco, enquanto que o kefir é estocado à 4ºC, pronto para o consumo.

O segundo método, conhecido como “método russo”, permite a produção de kefir em maior escala e utiliza fermentações em série a partir do percolado resultante da primeira fermentação com os grãos (sem a cultura mãe).

No processo industrial de produção do kefir, diferentes métodos podem ser utilizados, mas baseiam-se no mesmo princípio. O leite é inoculado com culturas puras isoladas de grãos de kefir ou culturas comerciais.

A etapa de maturação pode ser realizada ou não, e consiste em manter o kefir à 8-10°C por até 24h, de forma a permitir o crescimento dos microrganismos, principalmente das leveduras que contribuem para sabor específico do produto. A omissão desta etapa está associada ao desenvolvimento de sabor e aroma atípicos no kefir.

Embora, a bebida comercial esteja disponível em muitos países, nem sempre todas as propriedades do kefir tradicional estão presentes.

Esquema de produção de kefir artesanal. 1-Grãos de Kefir; 2-Grãos inoculados em leite; 3-Coagem dos grãos após 24h de fermentação a 25ºC; 4-Bebida kefir pronta para consumo

Padronização

O uso de culturas comerciais pode padronizar a produção comercial do kefir, se a seleção de espécies e estirpes de leveduras e bactérias for realizada de forma rigorosa e, possibilitando produção de uma bebida “tipo kefir”, com sabor e aroma aceitáveis e boas propriedades de conservação. A bebida comercial pode ter um prazo de validade de até 28 dias, enquanto que recomenda-se que o kefir produzido com os grãos seja consumido entre 3 a 12 dias. No entanto, o produto “tipo kefir” pode não apresentar as mesmas propriedades terapêuticas e probióticas presentes no kefir tradicional.

O desenvolvimento de uma bebida “tipo-kefir” não é a única aplicação industrial. Grãos de kefir também já foram estudados quanto à produção de células ricas em proteínas (Single cell protein – SCP) na bioconversão de soro de queijo e aplicação destas proteínas na indústria de alimentos, a fim de melhorar as características sensoriais dos produtos.

Os vários benefícios associados ao seu consumo fazem com que essa bebida seja considerada um probiótico natural

Técnico controlando a qualidade do produto

Falhas

As principais falhas na fabricação do kefir podem ser atribuídas ao sabor e aroma desagradáveis, típicos de levedura. O último pode ser causado pela rápida multiplicação de Sacharomyces cerevisiae, a levedura da cerveja, acompanhado por um aroma típico de vinagre (48). A produção excessiva de ácido acético pode influenciar o aroma do kefir, e ocorre devido ao intenso crescimento de Acetobacter spp. ou presença de Dekkera spp. nos grãos. Um sabor amargo no kefir pode ser causado por fungos como Geotrichum candidum e/ou atividade de algumas leveduras atípicas que podem estar presentes no produto.

Aspectos terapêuticos

Historicamente o kefir tem sido recomendado para tratamento de vários quadros clínicos como problemas gastrointestinais, hipertensão, alergia e doença cardíaca isquêmica, porém, a variabilidade inerente às condições utilizadas na produção do kefir em diferentes ensaios, dificulta a comparação entre os resultados científicos relatados.

Fermentações a partir de vários nutrientes com grãos têm sido avaliadas, e uma grande variedade de compostos bioativos tem sido encontrada como ácidos orgânicos, CO2, H2O2, etanol, peptídeos bioativos, exopolissacarídeos (kefiran), e antibióticos naturais. Estes compostos podem agir independentemente ou em conjunto para produzir os vários benefícios à saúde atribuídos ao consumo de kefir.

Santos e seus colaboradores observaram o comportamento antagônico dos isolados de lactobacilos de grãos de kefir contra as bactérias causadoras de doenças alimentares: Escherichia coli, Listeria monocytogenes, Salmonella, Shigella e Yersinia. Em outra pesquisa, Silva e colaboradores observaram inibição da levedura Candida albicans e das bactérias Salmonella, Shigella, Staphylococcus aureus e Escherichia coli por kefir cultivado em açúcar mascavo. Já Chifiriuc e seus colaboradores observaram que todos os leites fermentados com grãos de kefir apresentaram atividade antimicrobiana contra Bacillus subtilis, Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Eenterococcus e Salmonella, mas não inibiram Pseudomonas aeruginosa e Candida albicans. Todos estes estudos indicam que a atividade antimicrobiana do kefir está associada à produção de ácidos orgânicos, antibióticos naturais, dióxido de carbono, água oxigenada, etanol e diacetil. Estes compostos podem exercer efeitos benéficos, não só na redução de patógenos alimentares e bactérias deterioradoras, durante a produção do alimento e estocagem, mas também no tratamento e prevenção de gastroenterites e infecções vaginais. Além disso, a atividade antimicrobiana do polissacarídeo kefiran, também foi comprovada contra bactérias e a levedura Candida albicans.

A atividade cicatrizante do kefir e do kefiran em camundongos foi evidenciada após sete dias de tratamento com gel de kefir, assim como a atividade anti-inflamatória sobre modelo de indução de tecido granulomatoso e contorções abdominais induzidas por ácido acético, em camundongos. Huseini e seus colaboradores comprovaram a atividade cicatrizante em queimaduras infectadas com Pseudomonas aeruginosa, em camundongos.

Ação no trato gastrintestinal

O efeito provocado pelo consumo de kefir na composição da microbiota intestinal pode ser devido a uma combinação de fatores, como: inibição direta de micróbios nocivos pela produção de ácidos e antibióticos naturais, além da exclusão competitiva destes agentes nocivos na mucosa intestinal. Segundo Marquina e colaboradores, o consumo de kefir aumentou significativamente as contagens de bactérias láticas (benéficas ao corpo) na mucosa intestinal e reduziu a população de enterobactérias e clostrídios. Além disso, preveniu a colonização de Campylobacter jejuni no ceco de pintos, e foi eficaz no tratamento pós-operatório e em pacientes com desordem gastrintestinal.

Na Rússia, o kefir tem sido utilizado por pesquisadores no tratamento de pacientes com úlcera péptica no estômago e duodeno.

Efeitos anticarcinogênicos

O papel anticarcinogênico exercido por produtos lácteos fermentados pode ser atribuído, de maneira geral, à prevenção de câncer e supressão de tumores iniciais, pelo retardo das atividades enzimáticas, que convertem compostos potencialmente causadores de câncer em causadores, ou pela ativação do sistema imune. Kubo e seus colegas reportaram a inibição da proliferação do tumor ascítico de Ehrlich, transplantado subcutaneamente, em camundongos. Liu e seu grupo de pesquisas observaram inibição do crescimento tumoral em camundongos, indução da lise celular por apoptose do tumor e aumento significativo dos níveis de anticorpos do tipo IgA, sugerindo potencial antitumoral da bebida e promotor da resistência da mucosa a infecções intestinais. Os pesquisadores Guven e Gulmez relataram que camundongos tratados com kefir, apresentaram maior efeito protetor contra os danos induzidos pelo tetracloreto de carbono, indicando que o kefir pode agir como antioxidante.

Estimulação do sistema imune

Durante o processo de fermentação ou digestão, a formação de peptídeos bioativos, tem mostrado uma variedade de atividades fisiológicas, incluindo a estimulação do sistema imune, em modelos animais. Thoreux e Schmucker após alimentar camundongos com kefir, observaram um aumento da resposta imune específica de mucosa (anticorpos do tipo IgA) contra a toxina da cólera. A estimulação do sistema imune também pode ocorrer devido à ação de exopolissacarídeos encontrados nos grãos de kefir. Medrano e seus pesquisadores observaram que o kefiran foi capaz de modificar o equilíbrio das células imunes na mucosa intestinal.

Vinderola e seus colegas demonstraram a capacidade de imunomodulação de kefir, na resposta imune da mucosa intestinal de camundongos. A administração de kefir também induziu a resposta na mucosa intestinal, sugerindo que componentes do kefir podem estimular células do sistema imunológico inato, suprimindo resposta imune do fenótipo Th2 ou promovendo respostas imunes mediadas por célula, contra tumores e infecções de patógenos intracelulares. Recentemente, Hong e colaboradores mostraram in vitro, a capacidade imunomoduladora de bactérias láticas isoladas de grãos de kefir, sugerindo sua influência na secreção de citocinas pro-inflamatórias.

Redução do colesterol

Os possíveis mecanismos propostos para a atividade hipocolesterolêmica de bactérias láticas podem envolver a inibição de absorção de colesterol exógeno no intestino delgado, pela ligação e incorporação do colesterol com células bacterianas, assimilação do colesterol, bem como uma supressão da reabsorção dos ácidos biliares, pela desconjugação enzimática dos sais biliares, promovida pela enzima bacteriana Hidrolase biliar. Wang e colaboradores observaram uma redução significativa nos níveis séricos de colesterol total, lipoproteínas de baixa densidade (LDL-C) e triacilgliceróis, enquanto que não houve mudança no nível de lipoproteínas de alta densidade (HDL-C), em camundongos alimentados com dieta rica em colesterol, suplementada com Lactobacillus plantarum. Além disso, o colesterol total e triacilgliceróis do fígado também foram reduzidos. Já o colesterol e triacilgliceróis das fezes dos animais aumentaram significativamente. Em outro estudo, também foi observado uma redução dos níveis séricos de triacilglicerol e colesterol, principalmente da fração não-HDL-C. Um resultado contraditório foi relatado por St-Onge e seus colegas, onde o consumo de kefir não reduziu os níveis de colesterol total, LDL-C, HDL-C ou triglicerídeos, mas aumentou as concentrações de ácidos isobutíricos, isovaléricos e propiônicos, assim como, a quantidade total de ácidos graxos de cadeia curta, nas fezes.

Intolerância à lactose

A capacidade de redução na concentração de lactose e presença de atividade ß-galactosidase, em produtos lácteos fermentados, os tornam adequados para consumo por pessoas classificadas como intolerantes à lactose. Já foi demonstrado que alguns grãos de kefir possuem atividade da enzima ß-galactosidase, que se mantém ativa quando consumida e que o kefir contém menos lactose que o leite. Um kefir comercial mostrou-se tão efetivo quanto o iogurte na redução de hidrogênio expirado e flatulência em adultos intolerantes à lactose, quando comparado à ingestão de leite. de Vrese e pesquisadores mostraram que porcos alimentados com kefir, apresentaram um aumento significativo, nas concentrações plasmáticas de galactose, sugerindo melhora da hidrólise intestinal da lactose, pela enzima ß-galactosidase microbiana.

Professor Marco Antonio Lemos Miguel

Em resumo

O kefir tradicional é um exemplo da coexistência de bactérias e leveduras e a importância desta relação simbiótica parece clara, uma vez que é necessária para produção de compostos benéficos para saúde. Embora as evidências não possam ser conclusivas e mais estudos devam ser conduzidos, os já realizados comprovam os benefícios para a saúde relatados empiricamente pelo seu consumo histórico. Atualmente, a aplicação de probióticos na indústria de alimentos está em franca expansão e o entendimento das relações simbióticas entre diferentes microrganismos presentes neste alimento, assim como, estas interações poderiam auxiliar na melhoria dos processos tecnlógicos.

A qualidade do kefir tradicional é principalmente influenciada por microrganismos presentes nos grãos e condições de processamento. Embora cientistas e indústrias de alimentos tentem desenvolver uma bebida “tipo-kefir” elaborada por diferentes culturas comerciais de bactérias láticas, ou até mesmo culturas puras isoladas de grãos de kefir, seu sucesso quando comparado ao kefir tradicional é limitado. Porém, do ponto de vista industrial, estes desenvolvimentos são bem-vindos, face à dificuldade de padronização na produção e comercialização do kefir tradicional.