Na primeira metade do século XVI, Gabriel Soares de Souza, colono da Província da Bahia de Todos os Santos, produziu o primeiro e mais importante tratado descritivo sobre as condições ambientais do Brasil. Seu testemunho exageradamente otimista em relação às condições do novo território, como observou Maria Yedda Linhares, é definitivamente realista na extensa lista de animais e vegetais comestíveis, designados como ‘mantimentos naturais da terra’.

Descreveu as diversas aves e ‘galinhas do mato’, o modo de caçá-las à flechadas e com cães, e como prepará-las para garantir o paladar e a qualidade de suas carnes. Sobre os papagaios, araras e tucanos observou que, conforme a espécie, suas carnes eram duras ou saborosas. Ressaltou o sabor das pombas e ‘perdizes’, dos tatus, macacos, ariranhas, cágados, preás, cobras, lagartos e da preguiça, cuja carne os índios não comem “…por terem nojo dela”.

Tal descrição utilitária do mundo natural refletia o princípio aristotélico de que tudo existia para um propósito. Seguindo uma ordem hierárquica que incluía objetos inanimados, plantas, animais e seres humanos, os menos perfeitos justificavam sua existência para servir aos mais perfeitos. O mesmo acontecia no interior das sociedades humanas onde, como observa Daniel Lourenço, homens eram superiores às mulheres, senhores aos escravos.

A criação dos primeiros jardins botânicos e herbários ingleses para abrigar espécies comestíveis e medicinais atendia a esse mesmo utilitarismo. Keith Thomas observa que critérios morais eram adotados na classificação de algumas espécies animais. O livro História dos Animais Quadrúpedes, publicado pelo teólogo inglês Edward Topsell, em 1607, os definiu como amigos do homem, confiáveis e comestíveis.

Durante a ocupação holandesa, entre 1630 e 1654, Guilherme Piso criou sua própria lista de aves comestíveis. O cariamã, o mutu, a pomba, o aracari, e o marreco eram caçados e também criados em cativeiro para engorda, assim como coelhos, pacas e cotias. Mais uma vez, o que despertou sua atenção foi a quantidade e variedade dos papagaios que voavam aos bandos, pela incrível beleza das cores, e por seus gritos estridentes que ressoavam nas florestas. Concluiu que em nenhuma outra parte do mundo haveria tantos papagaios em variedade e número como aqui, e discorreu filosoficamente sobre o comportamento dessas criaturas:

“Só aos papagaios parece ter sido concedida a prerrogativa de garrir muito bem, e até, como que dotados de razão, aprendem a falar com os homens. É certamente para admirar que isso aconteça nesta vasta solidão e barbárie, onde tão crassa brutalidade domina os próprios homens. … Em todo o gênero dos papagaios a língua é larga e grossa, com ligamentos e nervos excessivamente fortes, como favorecendo seu perpétuo movimento e garrulice. Destarte os papagaios, também pelos gregos, mereceram ser chamados de ‘aqueles que falam uma língua humana’. Dois deles domesticados (que eu dera ao meu criado para custodiar), muitas vezes despertando de noite, ou chamados por nós falaram meio sonolentos…. Logo, não é falso o que Scaliger afirmou, no tratado de Aristóteles sobre as águias caçadoras e outras aves, a saber, que os animais que desovam não somente dormem, mas também sonham”.

(Piso, 1957: 203).

Imagem: Johan Maurice Rugendas, 1835 (detalhe)