Os processos produtivos em gado de corte resultam da interação entre a genética e o meio ambiente. Portanto, devemos nos atentar para o fato de que o sucesso da produção está diretamente ligado à harmonização destes dois componentes. Na seleção dos animais domésticos, é preciso perceber os animais como organismos vivos inseridos em um sistema de produção, do qual eles retiram energia e a transformam no seu próprio crescimento, na sua reprodução e na produção dos produtos que consumimos (carne, leite, lã, ovos etc.).

Compete, então, aos criadores, intervirem da melhor maneira possível, otimizando essa relação de troca de energia entre o animal e o ambiente.

No caso das raças bovinas de corte, verificamos uma plasticidade genética formidável e esse é um desafio adicional para o selecionador: decidir, entre várias opções e modismos, qual o modelo mais adequado para o seu sistema de produção.

A seleção de gado de corte atual está equipada com um amplo ferramental. Modelos matemáticos avançados trabalhando com bases de dados corretas, permitem-nos conhecer, com relativa precisão, o valor genético do indivíduo para determinadas características. São as denominadas DEPs – Diferenças Esperadas na Progênie, que têm sido agregadas cada vez mais ao processo seletivo. DEPs só podem ser obtidas para características que são medidas na população e cujo conjunto de dados final apresente, o que chamamos em estatística, comportamento de distribuição normal.

A uniformidade do gado é consequência de uma boa seleção genética

Entretanto, nem todas as características que queremos ou precisamos melhorar podem ser medidas dessa forma nos animais. Algumas não podem ser medidas pela relação custo x benefício desfavorável, em que os ganhos possíveis de serem alcançados a partir delas não compensam sua mensuração. Outras, pela simples impossibilidade de medi-las pela ausência de um instrumento que o faça, como, por exemplo, a harmonia do conjunto do corpo do animal – uma característica complexa que não se encontra em nenhuma parte específica do corpo, mas que se traduz pela relação entre as partes e tem uma íntima relação com um fator importantíssimo na criação: o valor adaptativo dos animais. Valor adaptativo (fitness, em inglês) é uma expressão que significa a capacidade natural de um indivíduo estar bem em um dado ambiente. O valor adaptativo pode ser comprometido de forma relativamente fácil, caso os critérios de seleção dos animais não contemplem uma visão sistêmica, holística.

Como é típico em nossa sociedade, confundimos os avanços tecnológicos com uma necessária obsolescência das tecnologias anteriores. Temos uma tendência muito forte de adotar a tecnologia da hora como sendo a redentora e única, e nessa esteira estamos “depeizando” exageradamente a seleção. Não que as DEPs não devam ser urgentemente incorporadas e valorizadas como critério de seleção – isso seria anacrônico –, mas é preciso relativizá-las e entendê-las exatamente como elas são: as melhores estimativas de valor genético do gameta médio de um animal para uma dada característica em um dado momento. E acreditem, isso é muito, mas não é tudo.

E exatamente por requerermos mais dos animais do que as DEP’s hoje disponíveis fornecem que temos que buscar critérios adicionais que minimizem o efeito de uma seleção desestabilizadora. Nesse momento é que entra em cena a percepção humana, representada pelas tradicionais avaliações visuais de tipo dos animais. Elas ainda se colocam como fortes instrumentos de seleção e foram, durante muito tempo e ao longo dos milhares de anos de domesticação dos animais, a única ferramenta disponível para a humanidade. O olho humano tem sido utilizado desde o início do processo de domesticação dos animais e é a mais antiga ferramenta de seleção de bovinos que atende às características desejadas pelo homem, não existindo nenhum instrumento capaz de ser tão integrador de informações obtidas através de imagens. Como seleção em bovinos demanda muitas gerações, e gerações em bovinos são longas, não seria demais afirmar que grande parte da genética que temos hoje foi obtida com base em critérios que consideravam, em determinado momento, também olhar para os animais para constatar se os poucos números disponíveis correspondiam a indivíduos zootecnicamente adequados.

“A seleção em gado de corte, hoje, precisa ter um olho na tela do computador e outro no curral”

Mas as avaliações visuais, para serem aplicadas hoje, precisam estar contextualizadas e associadas aos resultados que o moderno melhoramento genético disponibiliza hoje, caso contrário perderiam seu sentido técnico. As ciências estão claramente se unindo. Física, química e biologia têm um inter-relacionamento sem precedentes na história da humanidade e nos permitem entender melhor o relacionamento dos seres vivos com o ambiente. Essa concepção precisa ser empregada na seleção – e muito especialmente quando estamos adotando as avaliações visuais – porque estamos, em última análise, trabalhando com transformações e uso dos recursos naturais que interagem com, pelo menos, essas três ciências.

Não raro surgem questionamentos se a aplicação das avaliações visuais é ciência ou arte. Deste ponto de vista, é interessante analisar se a seleção em si é uma ciência puramente ou um misto de ciência e aptidões pessoais não convencionalmente estabelecidas. Ciência é impessoal, apartidária e autônoma e tem que se submeter a regras rígidas e replicáveis.

A princípio parece que devemos concordar unanimemente que a seleção deva ser absolutamente aplicação de ciência, tal qual ela é dogmaticamente estabelecida. Porém, não há como negar que existe algo de pessoal, subjetivo e imponderável na seleção; e ainda, que ela não é absolutamente replicável. E nesse ponto pode surgir um questionamento: não deveria ser a seleção impessoal, científica e replicável? O mais provável é que não, embora não pareça ser possível responder com absoluta certeza essa pergunta, mas realmente se espera de um bom selecionador que ele tenha algum meio supra-genético de conhecer os méritos genéticos, apesar de duvidoso, porque lida com características invisíveis (ABCZ, 1998).

Cabe ao selecionador encontrar o equilíbrio perfeito entre o rigor científico (e sempre ser obediente a ele) e sua percepção pessoal da situação. Essa capacidade extra torna-o talentoso, diferenciado e capaz de mover culturas inteiras em diferentes sentidos, o que aumenta ainda mais sua responsabilidade.

A situação da seleção em gado de corte é uma conjunção muito peculiar de análises críticas fundamentadas em bases científicas (parte objetiva) e a capacidade preditiva e de inferência do selecionador para predizer situações futuras ou imaginadas (parte subjetiva).

Olhar para trás e examinar o real ou realizado deve ser feito de forma objetiva/científica. Agora, usar isto para predizer o futuro e/ou onde e como usar cada tecnologia em um sistema de produção imaginário (futuro) para maximizar nosso objetivo, contém sempre um elemento imponderável e que pode apenas ser predito.

Mesmo usando computadores e todo o acúmulo de informações, existe uma margem de erros e riscos, assim como ocorre nos mercados de capitais. Nenhuma metodologia é absolutamente perfeita para predizer valores, seja em que ramo da ciência estiver sendo usada. Todas contêm uma margem de erro e é preciso saber conviver com essa margem de insegurança. Não foi dada ao ser humano, em nenhum momento, a capacidade plena de prever o futuro. Nós podemos apenas, a partir dos fatos conhecidos, elaborar suposições de comportamentos futuros, que serão tanto mais próximos de sua realização verdadeira quanto maior e melhor for o conhecimento da situação atual e passada.

O sucesso de uma sociedade depende, em grande parte, da sua capacidade de realizar predições corretas: à medida que elas conseguem predizer preferências e situações de mercado, tendências populacionais e tomar decisões consequentes, o sucesso ou não dessa sociedade se estabelece e vai se acumulando.

A seleção em gado de corte, hoje, precisa ter um olho na tela do computador e outro no curral. Sem dúvida, este é um bom acasalamento.