No mundo existem cerca de 90 espécies de cetáceos. Cetáceos são mamíferos aquáticos conhecidos como baleias e golfinhos totalmente adaptados à vida aquática. De modo geral, esses animais são marinhos e vivem nos oceanos. No entanto, existem algumas exceções exclusivamente fluviais, que vivem em bacias de grandes rios no mundo como, por exemplo, na bacia Amazônica no norte da América do Sul, na bacia do rio Yang-Tsé na China e dos rios Indus, Ganges e Brahmaputra no subcontinente indiano. Os golfinhos de rio, por estarem mais próximos do homem e o seu hábitat sobrepondo áreas de atividades humanas, são as espécies de golfinhos mais ameaçadas e estão seriamente afetadas por diversas atividades antropogênicas ao longo da sua distribuição. Os golfinhos do subcontinente indiano são considerados espécies ameaçadas, enquanto o golfinho da China, o baiji (Lipotes vexillifer), desde 2006 foi declarado tecnicamente extinto devido à sobrepesca, à alteração e degradação do ambiente fluvial, e à interação negativa com a pesca.
Na Amazônia ocorrem as únicas espécies de golfinhos fluviais do Novo Mundo; o boto-vermelho, com duas espécies e o boto- tucuxi ou boto-cinza. O tucuxi é um dos menores golfinhos do mundo, alcançando no máximo 150 cm de comprimento e 53 kg de peso, e a única exceção da típica família de golfinhos marinhos Delphinidae a viver em água-doce.
O boto-vermelho tem uma distribuição bastante ampla nos rios da bacia Amazônica no Brasil, na Bolívia, Colômbia, no Equador, no Peru e na Venezuela e sua distribuição está limitada por grandes cachoeiras, fortes corredeiras, áreas muito rasas e de águas frias. Duas espécies são reconhecidas atualmente: o boto da Bolívia (Inia boliviensis), que ocorre na bacia do rio Madeira-Beni-Mamoré, e que se encontra atualmente isolado pela barragem da UHE de Santo Antônio, logo acima da cidade de Porto Velho, em Rondônia. Essa população é pequena e restrita enquanto o seu congênere Inia geoffrensis, conhecido como boto-vermelho ou boto-cor-de-rosa, além de abundante, habita os principais rios e tributários da bacia Amazônica. Antes de ser denominado boto-vermelho pelos colonizadores europeus, esse golfinho de rio era conhecido como Piraiá-guará, que em tupy-guarani significa “peixe-vermelho”. O nome boto-cor-de-rosa, popularizou-se no Brasil na década de 80 quando o documentário do famoso explorador francês “Jacques Cousteau na Amazônia” foi traduzido ao pé da letra do inglês para o português – Pink dolphin como golfinho cor-de-rosa e posteriormente popularizado como boto-cor-de-rosa, para diferenciá-lo do boto-cinza, o tucuxi. Naquela ocasião, muitas pessoas acreditaram que era uma nova espécie de boto que havia sido descoberta, mas na realidade foi apenas uma nova denominação popular para um animal já bem conhecido nos rios da Amazônia brasileira, o boto-vermelho.
Boto vermelho
O boto-vermelho, como vamos chamar essa mitológica criatura das águas Amazônicas, é o maior dos golfinhos de água-doce. Os machos são bem maiores e mais robustos do que as fêmeas e chegam a medir 250 cm e pesar 200 kg. As fêmeas raramente ultrapassam 220 cm e 155 kg. Quando nascem são cinza escuro e ficam mais claros na medida em que crescem. Machos adultos são mais rosados que as fêmeas e a cor rosada brilhante é uma propaganda honesta da sua boa forma física e capacidade reprodutiva. Nos machos, parte dessa coloração rosada se deve à abrasão e perda de epiderme durante as intensas interações agonísticas e intraespecíficas na competição pelo acesso à fêmea em estro. O boto-vermelho é o único mamífero além do homem, que utiliza objetos como ornamento para se exibir para as fêmeas; tais como galhos, objetos flutuantes, feixes de capim, pedaços de barro e argila etc.
Longevidade
Assim como os golfinhos marinhos, o boto-vermelho vive bastante, podendo alcançar mais de 50 anos de idade. As fêmeas atingem a maturidade sexual antes dos machos, por volta de 6-7 anos, enquanto os machos atingem sua maturidade por volta dos 10 anos. A gravidez dura cerca de 10-11 meses e somente um filhote é produzido por gestação. Assim como quase todos os organismos vivos na Amazônia, o boto-vermelho também sofre grande influência do ciclo hidrológico dos rios da região, e tanto seus movimentos sazonais quanto vários aspectos da sua biologia são marcadamente ligados as flutuações do nível dos rios como a vazante, seca, enchente e cheia. O pico de nascimentos, por exemplo, ocorre no início da vazante/seca, quando a disponibilidade de alimentos é maior e a fêmea pode suprir as demandas energéticas do final da gestação e lactação. Os filhotes são amamentados por cerca de três anos, mas podem permanecer com a mãe por períodos mais prolongados. Quando as águas abaixam, na vazante, os animais são forçados a migrarem para os canais principais onde permanecem até os rios voltarem a transbordar. Durante a cheia, no entanto, eles penetram na floresta alagada em busca de suas presas. Além de apresentarem pronunciado dimorfismo, esses golfinhos também apresentam forte segregação sexual, com maior proporção de fêmeas ocupando as áreas mais internas da várzea e os machos os canais dos rios principais.
Assim como os golfinhos marinhos, o boto-vermelho pode alcançar 65 anos de idade
Alimento
Os botos até muito recentemente eram protegidos por lendas e superstições, no entanto, com o avanço dos meios de comunicação e o aumento da imigração na Amazônia nas últimas décadas, a população humana na região aumentou significativamente, assim como a demanda por mais alimento, recursos naturais e obtenção de recursos financeiros. Esses imigrantes, na sua grande maioria, não abraçaram a cultura e as superstições locais existentes, ao contrário, trouxeram novas informações e valores, erodindo nas populações tradicionais as estórias e lendas que originalmente protegeram os golfinhos amazônicos.
Isca
Hoje, os golfinhos estão sendo mortos para servirem de isca na pesca de um bagre conhecido por piracatinga ou urubu-d’água (Figura 4). O volume desse peixe no mercado brasileiro aumentou exponencialmente nos últimos anos, evidenciando a intensa captura e, consequentemente, o aumento do número de botos mortos para esse fim. Estudos recentes mostraram que, em certas regiões da Amazônia brasileira, a mortalidade dos golfinhos na última década aumentou mais do que o dobro por causa dessa pesca, e que essa taxa de mortalidade não é sustentável. Isso significa que se essa taxa se mantiver, a espécie poderá desaparecer em um futuro não muito distante.
Exportação
A piracatinga é um bagre necrófago que até muito pouco tempo nem era consumido na Amazônia nem pescado comercialmente. No entanto, a demanda por um tipo similar de um peixe que foi sobrepescado na Colômbia levou pescadores a capturarem e exportarem a piracatinga em grandes quantidades para esse país onde é comercializado com o nome de capaz. Mais recentemente, entretanto, passou a ser comercializado filetado e congelado nos mercados de várias cidades brasileiras, incluindo Manaus, com o nome fantasia de douradinha.
Ameaça
Outra grande ameaça que o boto-vermelho enfrenta, são as inúmeras construções de hidrelétricas nos rios da região. O barramento dos rios fragmenta as populações de botos que acabam isoladas em lagos de hidrelétricas, impedindo o fluxo gênico.
No Brasil, todas as espécies de cetáceos estão protegidas por lei federal e o boto-vermelho não é exceção. Caçar, matar, perseguir ou molestar esse animal é crime (Lei nº 7.643 de 1987). No entanto, devido à falta de fiscalização mais efetiva, apesar de protegido, o boto-vermelho continua a ser morto para servir de isca na pesca da piracatinga.
Será que o boto da Amazônia vai se tornar uma lenda?
Foto abertura: Nívia do Carmo – Boto-vermelho, Inia geoffrensis, pode-se observar o melão no topo da cabeça, que é a estrutura utilizada na ecolocalização, o longo rosto e o pequeno, mas funcional, olho.