Entendamos como superadas aqui as dúvidas sobre a profissão, a escolha da faculdade ou de sua base anterior à formação: você já está se formando e as dúvidas agora são em relação a como vai enfrentar a vida – mais que o mercado de trabalho. Quais aspectos fundamentais a minha formação não contemplou e ninguém me disse que era necessário buscar? O que eu tinha antes que devo abrir mão agora para despir-me de preconceitos que possam prejudicar meu desenvolvimento como profissional e como humano?

A maior parte dos formandos não se sente preparada para encarar o mercado e a vida, e pode culpar a instituição ou a falta de um estágio ou formação complementar específica que poderia ter-lhe dado o que sente faltar agora; ou, pior ainda, adotar uma postura presunçosa que o impedirá de aprender o que falta – porque sempre falta, e muito! – e lhe pode atingir a imagem profissional para sempre. Mas, fugindo aos clichês de onde encontrar a resposta, trata-se mais de uma disposição de sua persona que de um complemento a formação profissional.

O preparo psicológico

Veterinários, em especial os que atuam em clínica, são mais propensos à síndrome de burnout e estão em maior risco de sofrimento psicológico e/ou depressão culminada em suicídio em taxas até 3,5 maiores que a população em geral[1]. A formação generalista, com alta expectativa das pessoas com quem o formando se relaciona, podem deixar o profissional perdido e estressado. Ele terá uma posição na sociedade, queira ou não, e as expectativas e sentimentos elaborados são complexos. Ainda, uma rotina que envolve a exposição a vários estressores ocupacionais, longas horas de trabalho, resultados inesperados, e problemas na comunicação de más notícias acabam por cansar e trazer desânimo já nos primeiros meses de atuação. Some-se a depreciação frente a outros profissionais de saúde com formação com demandas semelhantes ou até menores, exposta tanto na mídia quanto nos relacionamentos do dia-a-dia. Não raro, muitos desistirão no início.

É preciso estabelecer limites – para os outros, mas antes para si, horários de descanso e investir em uma sólida força interna, com terapia antes do aparecimento dos problemas e rede de apoio com quem contar para uma conversa ou substituição em tarefas pontuais, até o reestabelecimento frente aos problemas de ordem prática ou psicológica. Saber processar corretamente as emoções, colocando-as em seu lugar bem como a si, aos animais e aos contratantes – que muitas vezes não compreendem suas próprias emoções em relação aos problemas que trazem para o profissional, desequilibrando a comunicação e as reações desde o início do relacionamento – são habilidades que o indivíduo não aprende rapidamente e demandam um preparo em autoconhecimento, terapia e adoção de uma postura que separe cada problema em sua raiz. Não negar os problemas, mas processá-los distintamente e destacados de seus aspectos pessoais. A fadiga da compaixão [2], que não se fala e que não se conhece no início, é real e deve ser considerada. Ter um ambiente de proteção e uma rede de apoio específicos para os momentos mais complicados é fundamental.
Saber que esse preparo tem um custo financeiro – ainda que sejam “apenas” das horas de descanso – também envolve essa preparação. Se o próprio indivíduo não investe em sua saúde mental, ninguém o fará.

Reconhecer-se como profissional de saúde pública, antes de tudo

Para saber seu lugar, colocando os limites de que falamos no item anterior e complementando corretamente a formação, devemos primeiramente nos colocarmos como profissionais de saúde pública, não importa a área em que escolhermos atuar: o papel que desempenhará na cadeia é essencial e importante para a saúde pública, seja comunicando riscos, fornecendo informação de importância epidemiológica ainda que não se dê conta ou sendo a única referência de saúde a que o interagente tem acesso. Isso implica um posicionamento na sociedade, com valorização dos aspectos técnicos de sua formação e atualização constante no tema, acompanhando a dinâmica das doenças e dos fatores de risco em seu entorno, valorizando o método científico, lendo bastante e se interessando pelas fontes de informação corretas, o que inclui:

  • Conhecer as instituições de referência e acompanhar suas orientações – a Organização Mundial da Saúde [3]; a Organização Mundial de Saúde Animal [4]; os órgãos regulamentadores no país – Ministério da Agricultura (MAPA) [5]; Ministério da Saúde (MS) [6]; Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) [7] e demais órgãos de sua região e municípios de atuação.
  • Conhecer seus limites éticos e a legislação pertinente à sua atuação – integrar-se e atualizar-se com o Conselho Regional de Medicina Veterinária de seu Estado e a legislação mínima de sua área
  • Saber realizar a notificação obrigatória de doenças [8] – sejam elas de interesse veterinário ou de saúde pública; se o cidadão comum e leigo o faz, que desonra e prejuízo à credibilidade teria este profissional ao não fazer ou não se antecipar às demandas específicas de sua formação no entorno em que atua.
  • Não ignorar as ferramentas necessárias – muitos profissionais acreditam que podem ignorar estatística e outros aspectos matemáticos de sua área de atuação; embora se recomende, sim, buscar ajuda para um trabalho específico, o conhecimento básico em estatística e epidemiologia ajuda a compreender questões relevantes do dia-a-dia do veterinário e a compreensão, interpretação e leitura crítica de artigos científicos necessários em sua área de atuação. Não ignore e busque reforço, se necessário.

Comunicação eficiente

Assusta pensar que nosso principal instrumento de trabalho é a comunicação, quando em nenhum momento temos formação específica para isto. Mas o veterinário é antes de tudo um comunicador: de riscos, de informações sanitárias e frequentemente de más notícias. Além de buscar a eficiência no tema, porque impacta diretamente no resultado de seu trabalho e em sua saúde mental, como explicamos em (1.), há que se buscar a correção, para não arriscar sua credibilidade. Nenhum investimento nesta competência será mal aplicado, principalmente porque envolve poucos custos além de tempo e leitura atenta e diversa.

Administração e precificação

Aqueles que “fogem” da clínica pensam não ter que se preocupar com isso, porém tudo tem custos: nosso tempo, nosso investimento em conhecimento, nossas ferramentas de trabalho, nossa percepção de risco e nossa visão sanitária. Alguns aspectos de administração podem ser buscados em formação complementar para o mercado e outros devem ser terceirizados a profissionais com mais domínio e presteza no tema, como a contabilidade de seu negócio. Fazer tudo sozinho impacta no primeiro e mais importante aspecto abordado – o psicológico.

Formação continuada

Apesar dos aspectos técnicos que fundamentam a profissão e não mudam com frequência, as descobertas na área das ciências necessárias à atuação relevante do profissional médico veterinário estão em constante atualização: mercado de trabalho, inovação e descobertas científicas. O profissional se forma já com defasagem em relação ao conhecimento de uma ou outra molécula, imagina toda a ciência que movimenta sua atuação. Para antecipar-se, é preciso no mínimo cultivar as leituras em inglês, língua preferida para as primeiras comunicações de novos experimentos; conseguir ler e interagir com outros profissionais em uma língua mais agrega ainda mais valor à formação. No entanto, saber reconhecer suas fontes de informação e rejeitar aquelas que são predatórias [9] ajuda a poupar o tempo indispensável nesta busca tão importante. Saber as tendências mundiais para seu mercado, se antecipar a assuntos como conservação, ecologia e bem-estar animal não são opcionais.

Colocar-se em segurança

Por mais que se avise, negligenciamos em algum momento. Trabalhamos sozinhos, nos expomos, confiamos e rejeitamos vários aspectos de segurança muitas vezes durante a carreira: biológica, química, mecânica, ocupacional, jurídica. Sabemos que “se o boi soubesse a força que tem, não virava bife” e ignoramos a força de nossos interagentes na rotina, sejam os animais, os contratantes, o ambiente ou nosso próprio psicológico. Crie uma equipe e demande tarefas, ainda que seja no calor daquela emergência; não ignore termos de consentimento em situações imperativas e informe-se sobre os vários aspectos de risco que muitas vezes passam despercebidos. A criação de uma cultura de reconhecimento de riscos e a autopreservação são próprios – busque ajuda na informação, mas saiba que ninguém vai armar-se por você.

Como abordamos no início, já estava encerrada a questão da dúvida: sabia-se que não seria fácil. A boa notícia é que coisa alguma é, de fato, e nenhum assunto se é possível conhecer em absoluto. O importante será sempre a postura e o aprendizado, são eles que inibem novos erros e interferem em todos os aspectos que entendemos como importantes para o início – até o fim – da atuação profissional. Ainda que não se possa interferir na postura do outro, levar o mínimo em conta é importante para a valorização que almejamos. Quero muito você possa se sentir realizado em sua profissão.

 

Paula Schiavo
Médica Veterinária, Mestre em Medicina Veterinária Preventiva
MAPA – Rio de Janeiro

Referências:
[1] TOMASI, Suzanne E.; FECHTER-LEGGETT, Ethan D.; EDWARDS, Nicole T.; REDDISH, Anna D.; CROSBY, Alex E.; NETT, Randall J. Suicide among veterinarians in the United States from 1979 through 2015. Journal of the American Veterinary Medical Association, Vol. 254, No. 1, p. 104-112, January 1, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.2460/javma.254.1.104>. Acesso em: 07 jan. 2021
[2] Compassion Fatigue Awareness Project. Disponível em: <www.compassionfatigue.org>. Acesso em: 07 jan. 2021
[3] www.who.int
[4] www.oie.int
[5] www.gov.br/agricultura/
[6] www.gov.br/saude/
[7] www.gov.br/pt-br/categorias?id=saude-e-vigilancia-sanitaria
[8] Portaria 264, de 17/02/2020, Disponível em: <bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/prt0264_19_02_2020.html>. Acesso em: 07 jan. 2021 e [sistemasweb4.agricultura.gov.br/sisbravet/manterNotificacao!abrirFormularioInternet.action]
[9] predatoryjournals.com