A doença

A Cinomose é uma doença infectocontagiosa de origem viral que causa imunossupressão grave e comprometimento sistêmico, que acomete principalmente canídeos e, dentre eles, os cães domésticos. Se dissemina através do contato com aerossóis, urina, fezes e secreções nasal e ocular contaminadas sendo altamente contagiosa e de alta taxa de letalidade, principalmente em filhotes que não completaram seu esquema vacinal, mas também acomete adultos que nunca receberam a vacina ou que não tomaram a dose anual de reforço.

Essa doença acomete os sistemas respiratório, digestório, urinário, linfático e nervoso. Dessa forma, os sinais clínicos que o animal poderá apresentar são dificuldade respiratória, podendo ocorrer infecção bacteriana secundária causando pneumonia devido à baixa da imunidade, diminuição de apetite e emagrecimento, e, por fim, sinais nervosos como espasmos, convulsões, perda de equilíbrio e vocalização. Além disso, o animal acometido apresenta secreções nasal e ocular e feridas/descamações na pele em diversas partes do corpo, principalmente barriga, parte interna das coxas traseiras, coxins e nariz.

Infelizmente, quando o vírus chega ao sistema nervoso, as chances de cura do paciente diminuem drasticamente devido aos danos causados e, em caso de melhora, permanece com sequelas neurológicas dos sinais apresentados durante a doença. Logo, terapias que visam a melhora ou reversão desse quadro estão sendo estudadas para que o animal tenha qualidade de vida e, uma delas, é a utilização de células-tronco mesenquimais.

A terapia celular

As células-tronco, também chamadas de células-mãe, são capazes de originar qualquer célula do organismo através do processo de diferenciação celular, e já foram utilizadas no tratamento da esclerose múltipla humana, uma doença autoimune neurodegenerativa com sequelas neurológicas semelhantes às da Cinomose. Essas células podem ser obtidas de diversos tecidos, porém, para o uso terapêutico, são utilizadas as células-tronco do tecido adiposo e da medula óssea. Além disso, as células-tronco são capazes de ajudar na renovação do sistema imune do animal, tendo efeito parácrino, imunomodulador, regenerativo e dá ao paciente suporte físico.

As células-tronco são divididas em grupos de acordo com sua potência de transformação, sendo:

  • As totipotentes, capazes de gerar todos os tipos de células embrionárias e extraembrionárias;
  • As pluripotentes, capazes de se diferenciar nas células dos três folhetos germinativos;
  • As multipotentes, que podem se diferenciar aos tipos celulares de mesma origem embrionária, e as
  • As onipotentes, que se diferenciam apenas em um único tipo de tecido, como, por exemplo, a camada germinativa da epiderme.

O tratamento utilizando células-tronco é feito a partir da inoculação dessas células no paciente, onde elas irão se diferenciar, se proliferar e/ou secretar substâncias que promovem a regeneração dos tecidos que sofreram alguma lesão. A terapia celular é capaz de tratar algumas doenças cardíacas e neurológicas, visto que podem restaurar o funcionamento de órgãos e tecidos através de reparo e regeneração. Uma outra vantagem é que as células-tronco mesenquimais oferecem uma menor probabilidade de rejeição pelo sistema imune do paciente receptor, garantindo uma maior segurança a esse tratamento.

Na terapia, as células adultas (hematopoiéticas, mesenquimais, neurais e epidermais) são as mais utilizadas. Dentre elas, na medicina veterinária, as células mesenquimais são as de preferência e as mais fáceis de se manejar, ao contrário das neurais, por exemplo, que possuem difícil cultivo e morrem com mais facilidade.

O tratamento

Para tratar as sequelas da Cinomose com células-tronco mesenquimais é preciso estipular qual o protocolo terapêutico a ser utilizado, visto que para cada animal e para cada tipo de enfermidade há um protocolo exclusivo e diferenciado, de acordo com as necessidades exigidas ao desenvolver da doença no paciente. Logo, depende de alguns fatores como, por exemplo, a dose de células que deverá ser utilizada e a frequência do tratamento; se irá utilizar células alogênicas (de outro paciente) ou autólogas (do próprio animal), sendo as alogênicas as mais utilizadas ultimamente pelo fato de os doadores serem saudáveis, embora as células autólogas possuam uma maior sobrevida no organismo receptor quando comparadas às células alogênicas; e, por fim, a via em que o transplante será feito, pois, dependendo do local pelo qual irá ocorrer esse procedimento, terá uma importância significativa no sucesso da terapia.

Das vias de transplante das células-tronco mesenquimais, a via intravenosa é a mais utilizada, mas também pode ocorrer pelas vias intratecal, intra/peri-lesional e intra-arterial. A via intravenosa apresenta grande eficácia quando se trata de manutenções sistêmicas, bem como pode ser usada em afecções neurológicas, além da via epidural. Estudos mostram que a via intra-arterial pode ser eficiente em casos de isquemia cerebral, embora seja um procedimento mais invasivo e haja riscos de embolismo, não sendo muito utilizada na rotina de terapia celular. Embora ainda precise de mais pesquisas, as vias intra/peri-lesional são ditas como eficientes pelo “entendimento” de que quanto mais próximo da lesão, mais eficaz e rápido será o tratamento.

Resultados

O resultado da terapia depende de cada paciente, visto que possuem suas particularidades como idade, avanço da doença, estado imunológico, cepa do vírus e a sua permanência no organismo do animal.

Imediatamente antes do transplante, é imprescindível que o médico veterinário faça uma detalhada anamnese do paciente, com exames clínicos gerais e específicos (neurológicos), a fim de se ter uma base para comparar com os futuros resultados e poder atestar a eficácia do tratamento.

Em um experimento realizado por Suelen Baldotto, pela UNESP, foram utilizados 10 cães adultos sem raça definida com teste qPCR positivo para cinomose e com sinais neurológicos como ataxia, paralisia, paresia, mioclonia e convulsão. O tratamento clínico padrão estabelecido previamente foi mantido, com exceção do corticoide. Para a avaliação neurológica, foi criada uma escala de 0 (normal) a 4 (muito grave), para mensurar os parâmetros de estado mental, comportamento, postura e coordenação da cabeça e tronco, nervos cranianos, marcha, reações posturais, propriocepção, reflexos espinhais, nocicepção e palpação epaxial. Para a avaliação dos parâmetros gerais foi realizada anamnese do comportamento, alimentação e estado de saúde, registrando a temperatura, frequência cardíaca e respiratória, coloração das mucosas, estado dos linfonodos, tempo de preenchimento capilar, pulso e grau de hidratação, teste de labirinto, resposta à ameaça, avaliação da acuidade visual e avaliação lacrimal pelo Teste Lacrimal de Schirmer.

O experimento foi dividido em 3 etapas, sendo M0 o momento em que o teste de qPCR foi realizado, juntamente à coleta de sangue para hemograma e bioquímica sérica; M1 o momento em que foi realizada ressonância magnética, colheita de líquido cefalorraquidiano (LCR) e transplante das células-tronco mesenquimais feito em dose única de 10×106 CTMs/kg; e M2 30 dias após o transplante, com reavaliação clínica e neurológica, além dos exames de ressonância magnética, nova colheita de LCR, hemograma e bioquímico.

Quando comparado M0 com M2, sinais como hiperqueratose dos coxins e déficit de produção lacrimal apresentaram significante melhora clínica.

Hiperqueratose dos coxins: regressão da hiperqueratose entre os momentos M0 e M2 (BALDOTTO, 2019)  

 

Produção lacrimal: regularização da secreção entre os momentos M0 e M2 (BALDOTTO, 2019)

Os resultados do hemograma e da bioquímica sérica apresentaram-se dentro dos parâmetros de normalidade em M0 e M2. A avaliação do LCR demonstrou redução do número de células presentes quando comparando M1 e M2, bem como diminuição na quantidade de proteína do líquido. As análises das imagens da ressonância magnética mostraram melhora das lesões dos pacientes, permitindo que fossem relacionadas aos sinais clínicos neurológicos (postura, marcha, coordenação, nervos cranianos e crises epiléticas) antes e depois do transplante, onde a maioria dos animais apresentaram melhora.

Em um outro estudo realizado por Cristiane Dantas (2019), pela Universidade de Brasília, foram utilizados 9 cães sem especificação de raça, idade ou sexo e que apresentavam paresia como sequela neurológica por consequência da infecção pelo vírus da Cinomose, sendo confirmada por sorologia sanguínea ou liquórica. Para o exame neurológico, os animais foram avaliados quanto a uma escala de 3 graus, sendo grau I animais que apresentavam ataxia e/ou tetra/paraparesia leve, grau II moderada e grau III tetra/paraplegia.

Os cães foram separados em 2 grupos, sendo o grupo 1 composto por animais que apresentaram diagnóstico positivo para a doença (3 cães), e o grupo 2 por animais que apresentaram o exame laboratorial negativo (6 cães – todos resgatados das ruas), porém, que foram diagnosticados com Cinomose baseado nos quadros clínicos apresentados, sendo considerados casos crônicos da doença. Um desses pacientes havia realizado tratamento prévio de estímulo da musculatura atrofiada por acupuntura e fisioterapia por 30 dias aproximadamente, não apresentando melhora do quadro clínico. Os animais resgatados não apresentavam sinais clínicos da doença no momento da adoção, vindo a manifestar paresia até 30 dias após o resgate, e o tratamento com CTM foi iniciado, em média, 3 meses após o início da paresia.

Para o tratamento, foram aplicadas 3 doses por via intravenosa, com intervalo de 21 dias, de células-tronco mesenquimais alógenas provenientes de tecido adiposo na dose de 2×10­­6 CTMs/kg diluídas em 50mL de solução fisiológica de Ringer com lactato. As avaliações foram divididas em 4 blocos, sendo M0 o início do tratamento (1ª aplicação), M1 e M2 as duas outras aplicações, e M3 a avaliação 21 dias após a 3ª e última aplicação.

Dos resultados do tratamento, todos os animais apresentaram algum tipo de melhora de um ou mais quadros clínicos, e apenas 2 dos 9 cães não apresentaram evolução quanto à locomoção, onde apresentaram tetraparesia em M0 e M3. 4 dos pacientes apresentaram melhora total, e 3 apresentaram melhora parcial, onde 2 apresentaram tetraparesia em M0 e paraparesia em M3, e 1 apresentou paresia de apenas um membro em M3. Todos os 9 cães apresentaram 100% de melhora do nistagmo. Porém, os pacientes que apresentavam desvio de pescoço e crises epiléticas não apresentaram melhoras até o fim do tratamento.

Do tempo de melhora, foi observado que os animais começaram a responder ao tratamento em diferentes momentos, corroborando com a ideia de que a recuperação da doença está relacionada à idade do paciente, à cepa do vírus, ao estado imunológico do animal e ao tempo de persistência do vírus no organismo. Neste sentido, cães mais jovens (3) apresentaram melhora significativa entre M0 e M1, e cães mais velhos (2) apresentaram melhora apenas em M2, e nestes, foi aplicada uma quarta dose de CTM. Logo, sugere-se que essa diferença do tempo de melhora dos sinais clínicos se deve à imunidade mais responsiva que os animais mais jovens possuem quando comparados aos mais velhos, além do estado crônico da doença que apresenta maior degeneração das estruturas afetadas.

Conclusão

A Cinomose é uma doença importante devido ao número de casos e às sequelas neurológicas que pode causar, além do alto índice de letalidade. Com isso, a terapia com células tronco alogênicas, que possui grande potencial regenerador sobre maioria de células do organismo, inclusive do sistema nervoso central, apresentou efeitos positivos para a diminuição das sequelas neurológicas causadas por essa doença, trazendo alívio dos sintomas e melhora na qualidade de vida do animal. A dose, frequência e via de administração deve ser realizada de acordo com cada paciente, sendo um tratamento único e personalizado.

Estudos demonstram que a chance de melhora aumenta quando os animais são tratados ainda no início dos quadros neurológicos e naqueles em que os sinais não estão tão profundos/graves, porém, a terapia com células-tronco não deve ser realizada quando o vírus ainda estiver ativo, pois os pacientes não apresentam melhora dos quadros clínicos. Logo, a utilização de CTM apresenta êxito apenas no tratamento das sequelas.

Os estudos envolvendo a terapia celular com células-tronco vêm sendo cada vez mais realizados no âmbito da medicina veterinária, se provando segura e possível no tratamento de diversas enfermidades que acometem os animais, sendo uma boa alternativa a ser oferecida dentro das clínicas veterinárias. Entretanto, ainda são necessárias mais pesquisas nesse campo, com estudos que utilizem um número maior de animais e um maior tempo de acompanhamento da evolução dos sinais clínicos.

Referências

BALDOTTO, S. B., Efeitos da terapia com células estromais mesenquimais multipotentes em cães com encefalomielite pelo vírus da cinomose. Tese (Doutorado em Medicina Veterinária) – Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia – campus Botucatu, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Botucatu, p.187. 2019. Disponível em: <https://dspace.uniceplac.edu.br/handle/123456789/187. Acesso em 06/11/2022>.

GREENE, C. E.; FORD, R. B. Doenças Infecciosas do Cão e do Gato, 4.ed. São Paulo: Ed. Roca, 2012, p. 1404.

MACHADI, R. P., Células-tronco no tratamento de animais com sequelas neurológicas ocasionada pela cinomose. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Medicina Veterinária) – Centro Universitário do Planalto Central Apparecido dos Santos, 2019. Disponível em:  <https://dspace.uniceplac.edu.br/handle/123456789/187>.

DANTAS, C. N., Tratamento com células-tronco mesenquimais em cães com paresia como sequela neurológica da infecção pelo vírus da cinomose. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Medicina Veterinária) — Universidade de Brasília, Brasília, p. 46. 2019. Disponível em https://bdm.unb.br/bitstream/10483/25532/1/2019_CristianeNascimentoDantas_tcc.pdf

SILVA. A. P., Cinomose canina e tratamento de sequelas neurológicas com células-tronco. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Medicina Veterinária), FEPESMIG-Varginha, p.44. 2021. Disponível em: <http://192.100.247.84/handle/prefix/2391>.

Autores

Eduardo da Silva Santos e Karin Izabel Wink – Discentes do Curso de Medicina Veterinária da UFRRJ
Clayton Bernardinelli Gitti – Docente do Curso de Medicina Veterinária da UFRRJ