Pense em animais que dormem de cabeça para baixo, possuem aversão à luz e comportamento noturno, se abrigam em cavernas e ainda algumas de suas espécies se alimentam de sangue. Pois é, devido aos seus hábitos peculiares, os morcegos muitas vezes são comparados a figuras más, como vampiros e demônios. Associadas a notícias onde o morcego é a origem de certas doenças, essas injustas comparações colaboram para ações de extermínio dos morcegos nas zonas rurais e urbanas. É essencial esclarecer que, embora mal vistos, esses incompreendidos animais prestam serviços ecológicos fundamentais à natureza e consequentemente, traz inúmeros benefícios ao homem.

Importância ecológica

Destaca-se seu papel como polinizador de cerca de dois terços das angiospermas das florestas tropicais do mundo, segundo Jardim (2008). Ao consumirem frutos de plantas como pimenteiras, tomates selvagens, jurubebas, juás, imbaúbas e figueiras, podem dispersar as suas sementes ao deixarem cair durante a alimentação ou ao defecarem, de acordo com Mello (2007). São considerados importantes reflorestadores de áreas degradadas pelo homem. Realizam o controle biológico de insetos, roedores, sapos, peixes, lagartos, pássaros e de certas pragas agrícolas, como algumas espécies de mariposa. Reduzem assim, o prejuízo provocado pelas pragas nas lavouras e a imensa quantidade de insetos transmissores de doenças ao homem nas cidades e no campo.

Embora existam vários estudos que buscam esclarecer aspectos da história natural dos morcegos e sua contribuição ao meio ambiente, pouco ou nada se divulga para a sociedade. No entanto, devido à pandemia causada pelo SARS-CoV-2, muito se ouviu falar da relação dos morcegos com a Covid-19, da problemática da utilização desses animais como alimento e de seu potencial como reservatório de diversos vírus mortais, como Raiva e Ebola, sem que necessariamente adoeçam por eles.

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Mecanismos de imunotolerância

O que se sabe é que esses animais podem conviver por toda a vida infectados com vírus que, em outras espécies, costumam ser letais e muitas são as teorias que explicam a resistência dos morcegos aos vírus. Dentre elas está a relação da alta taxa metabólica durante a atividade de voo. Esse alto custo metabólico resulta em um aumento da liberação de radicais livres de oxigênio e consequentemente gera mais moléculas de DNA danificado. Acredita-se que, para evitar respostas imunológicas indesejadas ao DNA danificado, o que levaria a danos nos próprios tecidos, os morcegos desenvolveram mecanismos de supressão da inflamação, o que controlaria a infecção viral.

Além disso, um estudo publicado em 2019 por pesquisadores da Duke – NUS Medical School, em Cingapura, identificou que a proteína NLRP3, que atua como um sensor de inflamação e desencadeia a resposta inflamatória para combater o estresse e a infecção, em morcegos pouco reage quando comparado a humanos e camundongos, mesmo na presença de altas cargas virais. Também foram encontradas variantes únicas de NLRP3 exclusivas de morcegos que tornam essas proteínas menos ativas nesses animais do que em outras espécies.

Quanto aos vírus, estando em um hospedeiro que os tolera, desenvolvem altas taxas de replicação, espalhando-se rapidamente pelas células e elevando a carga viral, o que representa um maior risco para a emergência de patógenos entre espécies em hospedeiros com sistemas imunológicos diferentes.

Assim, as teorias acima convergem em que, em vez de ter um mecanismo melhor de combate a infecção viral, os morcegos têm uma tolerância muito maior a ela através da capacidade de atenuar a inflamação excessiva induzida por vírus, o que permite o aumento da carga viral em seu organismo, e ao infectar outros animais e/ou pessoas, esses vírus levarão a quadros graves de doenças.

Então devemos eliminar os morcegos?

De maneira nenhuma! Como já foi dito, eles são animais essenciais para a manutenção de diversos ecossistemas. Além disso, a emergência de novos vírus causadores de zoonoses está muito mais relacionada à conduta humana de invadir áreas naturais, fazendo-se necessário planos de manejo adequados para controlar a dispersão desses vírus e minimizar os riscos de emergência dessas doenças, sem que ocorram prejuízos aos morcegos.

Referências

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Brook, C.E., Boots, M., et al. Accelerated viral dynamics in bat cell lines, with implications for zoonotic emergence. Elife. Fevereiro de 2020. Disponível em: https://doi.org/10.7554/eLife.48401.

Andrade, T.Y.I., Talamoni, J.L.B. Morcegos, anjos ou demônios? Desmitificando os morcegos em uma trilha interpretativa. Revista Simbio-Logias, v. 8, n. 11, dezembro de 2019, p. 179-187, disponível em: https://www.ibb.unesp.br/Home/ensino/departamentos/educacao/revistasimbio-logias/morcegos_anjos_ou_demonios.pdf.

JARDIM, M.M.A. Morcegos Urbanos: Sugestões para o controle em escolas públicas estaduais de Porto Alegre. Manual didático. Museu de Ciências Naturais. Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. 21p. 2008.

MELLO, M.A.R . Morcegos e frutos: interação que gera florestas. Ciência Hoje, v. 41, p. 30 – 35, 01 set. 2007.

Autores:

Beatriz Nunes Nascimento: Discente do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Brenda Paula da Silva Araújo: Discente do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Ellen Meireles Brandao: Discente do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Israel Marinho Baptista: Discente do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Clayton Bernardinelli Gitti: Docente do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Foto de capa: Pixabay