Fazer da paixão pelo campo um objetivo de vida e tratar a administração do rebanho como pilar para o crescimento do negócio. Com esse mote, a Agropecuária Recreio, situada no interior paulista, vem escrevendo sua história de sucesso no agronegócio e, principalmente, na pecuária, há mais de um século.

“Temos vocação para pecuária: começamos como pecuaristas e continuamos como pecuaristas. Sempre respeitando o meio ambiente”, enfatiza uma das sócias da Fazenda Recreio, Maria Beatriz Malta Campos Dotta e Silva. A empresária, que também é veterinária formada pela Universidade de São Paulo (USP), conta que tudo começou em 1904, quando seu bisavô adquiriu a Fazenda Santa Maria do Monjolinho, em São Carlos (SP), e iniciou com a atividade leiteira para consumo próprio. A fazenda, à época, dedicava-se à produção café.

Tratar a administração do rebanho como pilar para crescimento do negócio fez da Agropecuária Recreio uma das referências no agronegócio brasileiro

Com o passar dos tempos, outras atividades começaram a ser desenvolvidas na propriedade, já sob a administração do pai de Maria Beatriz, o engenheiro agrônomo Décio Luiz Malta Campos. “Além do plantio de cana-de-açúcar, fomos os pioneiros na criação e introdução de cavalos da raça Appaloosa no Brasil, lá pelos anos 1970”, lembra a pecuarista.

A empresa também aproveitou as oportunidades geradas para o setor sucroalcooleiro durante o mesmo período, com o Programa Proálcool, e passou a produzir cana-de-açúcar em larga escala. Anos mais tarde, a fazenda passou a criar gado Nelore para corte e gado Jersey para a produção de leite.

“Nessa época eu já havia me formado veterinária e passei a acompanhar de perto a produção de leite da Fazenda Santa Maria do Monjolinho, até que, por conta da sucessão familiar, decidi iniciar produção própria na Fazenda Recreio, de propriedade de meu pai, ao lado da Santa Maria, em 2004. A partir de então, a ideia foi continuar a criação de vacas Jersey para a produção de leite de qualidade. À época, meu esposo, Maurício, e eu passamos a ser sócios no empreendimento leite”, conta Maria Beatriz.

Evolução

A veterinária, que é responsável pela produção de leite orgânico na Fazenda Recreio, além de inspetora da Associação Brasileira de Criadores de Gado Jersey, relata que, inicialmente, adquiram oito animais do rebanho original, de propriedade de seu pai, e que foram liquidados ao longo da década de 1990 e início dos anos 2000. “Entre 2005 e 2013 investimos na compra de 40 vacas e novilhas. Nessa época, introduzimos o sangue da raça Holandesa na genética Jersey, ficando, assim, com animais Jersolando e Jersey”, explica.

Segundo Maria Beatriz, em 2004, a produção era de cerca de 80 litros de leite/ leite. Atualmente, são produzidos, aproximadamente, 1700 litros/dia. “Desde o início de 2019, nosso leite tem certificado orgânico, com 200 animais no rebanho total”, destaca a pecuarista. Ela acrescenta que o sistema de produção sempre foi baseado no Balde Cheio, da Embrapa, utilizando o sistema de pastejo rotacionado no verão e semiconfinamento no inverno.

Até pouco tempo atrás, Maria Beatriz e seus sócios utilizavam recursos próprios para realizar melhorias e ajustes necessários na área de leite. “Porém, para expansão mais recente, passamos a recorrer a empréstimos bancários para investimentos com maturação de médio-prazo”, salienta.

Produção orgânica

A Fazenda Recreio também produz leite orgânico certificado pela maior certificadora de orgânicos da América Latina, o IBD. “A produção orgânica envolve diversos valores com os quais nos identificamos e naturalmente estamos alinhados, como a sustentabilidade”, afirma Maria Beatriz. “Pretendemos crescer nesse mercado e expandir as atividades para outras áreas da fazenda.

Em 2017, em decisão tomada junto com a família, optaram por entrar para a produção orgânica de leite, a convite da Nestlé. “Naquele ano, eu já contava com a participação de meus dois filhos e sócios, Gabriel e Mário, na produção”, lembra a pecuarista. “De lá pra cá, utilizamos práticas orgânicas de produção em nossa propriedade, quando iniciamos a conversão do solo para o manejo orgânico certificado, e, desde 2019, produzimos leite orgânico certificado.”

Conforme explica, o valor agregado na produção de leite orgânico é maior; porém, os custos são altos. “O produtor tem que saber seu ‘número’ para avaliar se vale a pena correr o risco da produção orgânica, que é maior em comparação à convencional, que já possui risco considerável”, avalia.

Atualmente, o rebanho da fazenda possui cerca de 200 fêmeas das raças Jersey e Jersolanda, sendo, aproximadamente, 95 vacas em lactação, com produção média de 17,5 litros/vaca/dia no sistema a pasto no verão e em semiconfinamento no inverno. De acordo com Maria Beatriz, o DEL médio (Dias em Lactação) está em 145 dias, variando entre 130 e 180 dias ao longo do ano. “Nosso projeto inclui aumentar o número de animais até 300 fêmeas na mesma área, a fim de utilizar a terra de maneira mais eficiente, e produzir mais leite orgânico”, prevê. O projeto atual ocupa aproximadamente 70 hectares para a produção leiteira orgânica.

Segundo a empresária, a Fazenda Recreio possui cerca de 110 hectares de vegetação nativa preservada, sem nunca ter sido explorada. “Atualmente, nossas atividades principais incluem a produção de leite orgânico, a criação de bovinos para corte, criação de ovinos, produção de silagem para alimentação animal e produção de cana-de-açúcar”, destaca.

Ocorreram alguns desafios técnicos durante a conversão da propriedade e das vacas para o sistema orgânico de produção. “Como no sistema orgânico não é permitido a utilização de produtos químicos para fertilizar os solos e para controlar pragas nas plantas e nos animais, procuramos implementar o que tem procedência e é baseado em ciência, porém, no caso da pecuária orgânica, há muito ainda a ser desenvolvido”, pontua.

Administração

“Considero a administração do rebanho como pilar para o crescimento do negócio”, afirma Maria Beatriz, que é responsável pela sanidade animal e reprodução dos animais. Além da certificação de leite orgânico, a propriedade é certificada pela Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo como livre de brucelose e tuberculose. “A parte de administração financeira, de recursos humanos e o planejamento operacional é realizada pelos meus filhos, Mário e Gabriel, e conta com minha participação nas decisões do dia a dia”, diz ela que conta também com cinco funcionários na propriedade.

Desde 2004, a fazenda utiliza o sistema/software MDA da Clínica do Leite para gestão zootécnica do rebanho, que acompanha o rebanho inteiro com coleta de dados quinzenais ou mensais, a depender do estágio da vida do animal. “Recentemente, em parceria com a Nestlé, que compra a produção da fazenda, colocamos brincos de monitoramento da Allflex em todas nossas matrizes, para monitorar a ruminação, a atividade e o cio das vacas”, relata.

Para a empresária, é muito importante ter em mente os objetivos pretendidos para alcançar os resultados desejados. Um dos principais conselhos ou dicas para quem quer entrar no negócio leite é a realização de um projeto bem dimensionado para a área que deseja dedicar à atividade, pensando no lucro por hectare. “ Utilize assistência técnica qualificada e treine sua mão de obra para servir às vacas; faça todo o investimento de uma só vez, se for possível, pois a tentação de sair de um negócio meia boca é maior do que ficar em um negócio bem equipado; e, principalmente, tenha amor ao negócio leite, pois nada acontece sem isso”, lista.

Etapas

Segundo a empresária, uma das principais dificuldades para o pequeno produtor, e ela lembra que foi assim em seu início, é aumentar a escala de produção até o ponto de o negócio ser rentável. “Os primeiros anos, como a escala era pequena, foi necessário um maior volume de investimentos em vacas e novilhas, tanto para aquisição quanto para fazer a cria e recria das bezerras que nasceram na fazenda”, relembra.

Dentre as atividades cotidianas, Maria Beatriz destaca a produção de alimentos para os animais, que, no caso dela, especificamente, no início, era utilizado o pasto no verão e cana-de-açúcar no inverno. “Formamos as pastagens e os canaviais para consumo de nossos animais e o crescimento do rebanho conseguiu entregar certa escala de produção, o que permitiu tocar o negócio e fazer os investimentos necessários para continuar crescendo”, afirma. “Hoje utilizamos silagem de capim e sorgo”, acrescenta.

Outro desafio em relação às etapas do negócio, segundo a empresária, foi o de conciliar a evolução empresarial com a maternidade. Maria Beatriz é mãe do Mário e do Gabriel, ambos sócios da Fazenda Recreio atualmente, e da Maria Olívia.” Isso é gratificante, mas tocar ao mesmo tempo uma fazenda de leite, mesmo que pequena, e ser mãe, dá trabalho”, enfatiza.

Em relação à evolução da atividade, Maria Beatriz lembra que nem sempre tudo ocorre como planejado e o processo evolutivo passa por escolhas, às vezes, não assertivas. “Cometi erros ao longo da jornada e isso faz parte de nosso processo de aprendizado”, diz ela que aponta erros na escolha da genética, na dieta dos animais e no gerenciamento de recursos humanos também, por exemplo. “O importante é corrigir tais erros rapidamente, para que os danos sejam contidos e superados”, pondera, acrescentando que esse é o caminho para que o aprendizado seja duradouro e o negócio do leite se consolide.

Com a experiência acumulada ao longo dos anos, ela afirma que faria tudo novamente, mas cuidando para não cometer os mesmos erros e, com isso, acelerar o processo de crescimento. “Um negócio de leite bem dimensionado, bem equipado e produtivo é mais lucrativo e rentável que a produção de soja, milho, cana-de-açúcar e tantas outras culturas. Assim como a criação de boi e outras criações de animais”, garante a produtora.

 

Suporte

De acordo com Maria Beatriz, além da dedicação e compromisso com as atividades desenvolvidas, contar com o apoio de entidades que têm relevância do setor de pesquisas e desenvolvimento do agronegócio ajuda a simplificar os caminhos a serem percorridos. “Instituições como Embrapa, USP, Unesp, outras universidades e institutos federais, além de instituições financeiras como o Banco do Brasil e o BNDES, são pilares do agronegócio em nosso País. Elas ajudam muito na evolução e na difusão das tecnologias aplicadas à produção de leite em âmbito nacional”, argumenta. “Sempre é possível melhorar e desejo que essas instituições continuem evoluindo para que possam servir bem aos interessados em progredir nas suas atividades.’

A empresária, que é associada contribuinte da Abraleite (Associação Brasileira dos Produtores de Leite), considera fundamental a participação de todos os produtores de leite em entidades que representem o segmento. “Sou membro da recém-criada Comissão Nacional de Leite e Derivados Orgânicos da Abraleite, que foi criada para representar e auxiliar o setor leiteiro na formulação e na avaliação de políticas públicas para o leite orgânico, e meu filho Mário, é um dos secretários da Comissão”, conta. “A entidade é o principal avanço em representatividade do produtor de leite no Brasil, e nosso presidente Geraldo Borges tem nos representado com excelência em Brasília, angariando várias conquistas para o setor”, comemora.

Para o engenheiro agrônomo e diretor técnico da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), Alberto Figueiredo, no âmbito governamental, um estudo criterioso de impacto das regras tributárias sobre a cadeia produtiva do leite, principalmente diante da reforma tributária em processo de debate no legislativo, pode, dependendo das decisões, “incrementar o setor, tornando-o inclusive exportador, ou inviabilizar contingentes expressivos de produtores rurais e indústrias”.

Cenário

Figueiredo destaca que o produtor de leite vive, tradicionalmente, na incerteza em relação ao valor de remuneração pelo produto que entrega às indústrias e isso pode impactar no desenvolvimento da atividade. “Há oscilações durante o ano, com tendência de menores valores nas épocas quentes do ano (verão e parte do outono), e maiores valores no período frio do ano, entre o inverno e parte da primavera”, aponta e acrescenta que, em função do câmbio, com a valorização do dólar em relação ao real, os preços dos insumos utilizados para a suplementação alimentar das vacas de leite aumentam, influenciando no custo de produção. “Essa realidade tem provocado a desistência de muitos produtores”, lamenta.

Assim como a sócia proprietária da Agropecuária Recreio, o diretor técnico da SNA afirma que a perspectiva é favorável para os produtores que se utilizarem de tecnologia apropriada e um sistema de produção com produtividade adequada e custo compatível com os valores de venda do produto. “O principal desafio para os produtores é ter acesso às tecnologias compatíveis com o respectivo sistema de produção”, avalia.

Para Figueiredo, a pesquisa pública precisa ser concentrada em resultados financeiros esperados para cada tecnologia indicada, com prioridade para a produção de alimentos suplementares, na própria propriedade ou em outras especializadas. “Além disso, em relação à cadeia produtiva, do produtor até o consumidor, o maior desafio é a integração entre os segmentos, objetivando à definição de margens adequadas para cada etapa do processo, migrando do sistema atual do “ganha-perde” para um ideal, o “ganha-ganha”, destaca.

Quanto ao futuro da atividade no País, o especialista elenca algumas questões que devem ser priorizadas para viabilizar o desenvolvimento sustentável do negócio leite. “É preciso de pesquisa aplicada, indicando tecnologias financeiramente adequadas para cada sistema de produção, além da melhoria constante do padrão de qualidade dos produtos lácteos, desde as propriedades produtoras, passando pelos sistemas de transporte e, principalmente pelos processos de industrialização”, recomenda. Figueiredo também considera importantes o incremento da produtividade em todos os segmentos da cadeia produtiva do leite e derivados, através da redução de ociosidades, o aumento de valor agregado, a identificação de demandas internas e externas por produtos lácteos, além de regras tributárias inteligentes, de forma a garantir a competitividade do setor no cenário internacional. “Por fim, porém não menos importantes, é a realização de campanhas promocionais de produtos lácteos, principalmente quanto ao valor nutritivo do leite e derivados para a saúde humana”, arremata.