Maior conflito bélico sanguinário e mortífero da América do Sul, que envolveu quatro países Sul-americanos: Brasil, Uruguai e Argentina contra o Paraguai, também chamada guerra Grande, Cisplatina e Tríplice Aliança, com duração de seis anos (1864 a 1870), teve um Teatro de Operações, que se estendeu de Corumbá, MT até Assunção, Paraguai, com episódios e batalhas terrestres e fluviais num campo de batalha disperso e desconhecido, de mais de 2.623 km, quase duas milhas náuticas de extensão, em região pantanosa e despovoada, cujos principais eixos de sustentação e apoio bélico foram as hidrovias dos rios Paraguai, Paraná e bacia do Prata, onde aconteceram os maiores combates e batalhas.
Naquela época, os Exércitos beligerantes não tinham seus quadros regularmente constituídos, treinados e capacitados profissionalmente com doutrina forjada em escolas militares, nem a força terrestre, nem a força naval, sendo a maioria dos contingentes militares formado por civis e militares mal armados, sem suficiente disciplina, sem uma condução eficiente, sem adequados sistemas logísticos, sanitário, de inteligência e de engenharia. (DOURADO, G.T. M. USP, 2010)
O maior adversário na Guerra do Paraguai não foi o tirano ditador marechal Solano Lopes, que no seu ambicioso plano “secreto” queria fundar uma grande nação platina, da Patagônia ao Peru, anexando ao Paraguai, o Uruguai e a Argentina e abrir sua fronteira para o mar, mas a desorganização dos Exércitos aliados que não estavam preparados para a Grande Guerra.
No que diz respeito a logística de apoio e assistência à tropa ao longo do front de combate, especialmente em relação ao Exército Imperial Brasileiro, este, no início da guerra, já estava desgastado face aos embates contra Oribes e Rosas (1851 -1852), Campanha do Prata, encontrando-se assim estruturado:
“Não possuía em armas efetivos bastantes e habituados às guerras nas planícies do sul, suas forças eram inadequadas a uma luta armada da natureza e do vulto da que tinha de enfrentar. Faltava-lhe quase tudo, efetivos, armamentos, medicamentos, organização e até instrução militar em dia com os progressos da arte da guerra. Fizeram-se compras e aquisições de última hora no estrangeiro (…). Nosso pequeno e mal aparelhado exército deixava muito, senão tudo, a desejar, desde a instrução técnica e o preparo indispensável para a guerra até o comissariado de víveres e forragens, o serviço sanitário, o aprovisionamento de armas, fardamento, equipamento, meios de transporte, etc.” (AMARAL. B.M. UNISUL, 2017).
Com relação ao Serviço de Saúde, o estado sanitário da tropa e o meio ambiente insalubre da grande batalha, foco principal deste trabalho, fatos históricos e descrição de vários historiadores da guerra, assim descreveram a situação ao longo dos seis anos que se seguiram:
A) Meio Ambiente
De Corumbá-MT a Assunção-PAR, onde a guerra se desenvolveu em sua maior parte, o terreno era desconhecido, alagado, pantanoso e insalubre, ora plano, ora montanhoso, dificultando o deslocamento da tropa a pé e montada, nas manobras estratégicas e táticas desenvolvidas pela infantaria, cavalaria e artilharia. Essa situação ambiental se complicava à medida que as batalhas e combates se estendiam no sentido norte-sul, onde o terreno alagadiço e pantanoso dificultavam a movimentação da tropa a cavalo.
Outros fatores adversos que castigaram os contigentes envolvidos foram o frio, a chuva, o vento e a umidade. A maioria dos componentes do Exército Imperial, recrutados em Minas, Rio de Janeiro e Goiás, etc, não era acostumado ao clima temperado do Sul, sendo que o frio e a umidade causaram muitas baixas e mortes aos soldados imperiais não adaptados e desprotegidos das intempéries.
A falta de informações geográficas com cartas militares locais, contribuiu com o desconhecimento da natureza do solo, vegetação e acidentes geográficos para a realização das manobras e orientação da tropa: patrulhas de reconhecimento e combate a pé e a cavalo.
B) Víveres e Forragens
Era compromisso e responsabilidade do governo Imperial , do Brasil fornecer alimento, bebidas e forragens para os militares e animais do Exército e marinheiros da Armada engajados na Guerra. Em 1864, no inicio da Guerra com dois fronts, um em Corumbá-MT e outro em São Borja/Uruguaiana-RS, o Exército contava com um efetivo de 24 000 militares sendo que esse efetivo foi aumentado para 50 mil homens, em julho de 1867, quando Caxias assumiu o Comando dos Exércitos aliados: 35.000 (trinta e cinco mil) de infantaria, 10.000 (dez mil) de cavalaria e 5.000 (cinco mil) de artilharia, (Plano de Caxias). A cavalaria possuia um efetivo de 14 000 animais brasileiros, mais 8 000 argentinos, num total de 22 000 mil animais, cavalos, bois e muares, que eram usados também pela artilharia na movimentação dos canhões e canhoneiras.
O Exército não tinha um Serviço de Intendência organizado e os víveres e rações para a tropa e a cavalhada eram compradas por um Conselho de Compras, que nem sempre atendiam as necessidades da tropa em quantidade e qualidade. No campo de batalha não tinha hora marcada para as refeições que variava muito e só acontecia quando os combates davam trégua. Os soldados faziam suas próprias refeições quando tinham e recebiam os suprimentos que geralmente eram:
“Um boi vivo para 80 praças; um alqueire (36 litros) de farinha para 50 praças; uma garrafa de aguardente, para 12 praças; quatro onças (112 g) de bolacha, para cada dia; duas onças (56g) de sal; uma onça (28g) de fumo; duas onças (56g) de açúcar.” (MOURA,P. A. IGHMB. Rio de Janeiro, 2015).
Essa ração distribuída pelos Arsenais de Guerra à tropa, nem sempre atendia em quantidade e qualidade as exigências nutricionais do combatente. Além disso, nem sempre alcançava a tropa como um todo no campo, desgarrada, espraiada e distanciada dos acampamentos e armazéns. Os alimentos e a água de bebida e da confecção dos alimentos não passavam por inspeção sanitária de alimentos, sendo a maioria das vezes consumida poluída e contaminada, provocando doenças.
C) Fome
Foi um dos mais cruéis inimigos que perseguiram os soldados brasileiros por quase toda a Guerra, mormente quando o soldo atrasava, e às vezes por mais de um ano, impedindo o soldado de adquirir alimentos. Alguns trechos desse triste episódio são assim citados por renomados historiadores:
“Quando não chegavam as provisões, os soldados tinham que se alimentar com os recursos locais, isto é, utilizando-se quase exclusivamente de frutos silvestres, que os rodeavam: bacuri, murici, palmito e o fruto vagem de jatobá. Deste último, Taunay relatou: diante de sua abundância no local, eram feitas colheitas em enormes sacos, sendo depois distribuídos pelas autoridades militares como rações determinadas por Lei.”(TAUNAY, 1927.p.39)
Vivenciando as privações e dificuldades de alimentar a tropa aliada no campo de Batalha, em 17 de abril de 1866, assim se pronunciou o Cmt General Manuel Luiz Osório: “Falta farinha, bolacha e charque, visto que a maior parte se estragou por ter-se molhado no transporte; e muita carne se perdeu nos lamaçais por onde a tropa foi saltando e marchando “. (Arquivo da Marinha. Op.cit. Livro VIII, p.32).
“A abundância de alimentos era intercalada por frequentes privações, pois a má distribuição e a pouca diversidade de alimentos parece ter sido uma constante na Campanha, onde as verduras e os vegetais eram inexistentes, o que provocava a captura de animais pertencentes ao inimigo, em regiões vizinhas aos acampamentos. Depois de matarem cavalos e cachorros, os soldados comiam ervas, palmitos, o couro seco assado das cangalhas, farinha, milho seco.” (BARBOSA, 2000: 19).
“A situação de subsistência dos imperiais marinheiros era mais séria que a dos soldados do Exército, pois aqueles passavam muito tempo confinados dentro de pequenos espaços de uma embarcação e na falta de alimentos tinham pouca chance de procurar se abastecer com recursos do meio ambiente, a não ser quando os navios eram obrigados por uma razão ou outra a ficar ancorados na beira dos rios e os marinheiros podiam descer procurando alimentos nas matas ou vilas próximas.” (VENÂNCIO, 2006: 192-209)
“Quanto a cavalhada, força motriz, especialmente, da cavalaria, infantaria e artilharia, sofria de arraçoamento diário. Acostumada a alfafa, ao milho e ao sal componentes da ração que faltaram durante a campanha, padeciam, além da peste, com as excessivas intempéries, doenças, vermes e parasitas do campo. Emagreciam por causa das marchas excessivas e estafantes. Também sofriam em razão da má qualidade do arreamento que era distribuído as forças da cavalaria e artilharia. Por muitas mortes ocorridas nos efetivos cavalares e muares, houve falta de cavalos que afetou profundamente a estratégia dos combates, já que a cavalaria em muitos combates teve que combater a pé.” (CÂMARA, op.cit. p. 350)
D) Doenças
A aparição de doenças humana e animal nos vários campos de batalha da Guerra do Paraguai, deveu-se sobretudo: a escassa alimentação, os milhares de cadáveres insepultos, às más condições higiênicas, a enorme quantidade de bactérias que assolavam os acampamentos e campos de batalha. À longa lista de causas para a expansão de enfermidades e pestes deve juntar-se ao grave dano do sistema ecológico insalubre e a ruptura do equilíbrio natural que se efetuou com a presença de grande quantidade de pessoas que se deslocavam incessantemente pelos pântanos, pelas matas e bosques, penetrando no habitat natural dos agentes vetores e transmissores de doenças. (DOURADO, G.T. M. USP, 2010).
D1 – Doenças humanas. O Corpo de Saúde Imperial durante a Guerra do Paraguai não possuia doutrina militar – treinamento e capacitação – suficiente, para o atendimento das demandas sob o ponto de vista tático e estratégico. Seus recursos humanos: médicos, enfermeiros e boticários, equipamentos e medicamentos foram insuficientes para atender às demandas da tropa no extenso e variado campo de batalha. O desconhecimento técnico e científico da bacteriologia e da epidemiologia, bem como da vacinação da população, civil e militar, medidas higiênicas nos estacionamentos, refeitórios e acampamentos, foram causas determinantes para a transmissão e disseminação de doenças e milhares de baixas e mortes nos efetivos militares.
Num relatório do Gen Manuel Osório, em 1867, ao Almirante Jaceguay, ele relatou que o Brasil tinha em operações no Paraguai cerca de 45 000 homens. Em agosto desse mesmo ano, tinha cerca de 10 577 combatentes enfermos, ou seja, um quarto de militares indisponíveis para os combates. Durante o Comando do Gen Osório, as mortes somavam-se 10 400 homens vitimados pelas seguintes doenças: sífilis, pneumonia, tuberculose, lepra, varíola, sarampo, impaludismo, diarreia, disenteria, tifo, cólera, beriberi, malaria, tétano, febre amarela, além de outras causadas por insolação, geladura, ferimentos, suicídios e afogamentos. (OSÓRIO FILHO. op. cit. p.360)
D2 – Doenças animais. A revisão da historiografia da guerra do Paraguai não comenta muito sobre o estado sanitário da cavalhada empregada pelos exércitos na Grande Guerra. Sabe-se, no entanto, que desde a Guerra da Cisplatina (1825 – 1828), Guerra do Prata (1851 -1852) e Guerra do Paraguai (1864 – 1870), a Região do Prata reuniu milhares de animais: cavalos, mulas e bois, oriundos da Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai, que em profusão foram empregados pela infantaria, artilharia, engenharia e cavalaria, nas batalhas campestres e definição geopolítica territorial das fronteiras dos países beligerantes.
Alguns episódios e fatos históricos sobre a cavalaria nessas guerras são assim relatados: “Durante a marcha dos exércitos aliados entre Entrerios e Corrientes (990 km), províncias do território Argentino, não houve distribuição de forragem (alfafa e milho) para a cavalhada. 14 000 (quatorze mil) animais, que magros, debilitados e doentes, tiveram que ser invernados por Osório na cidade de Salto, deixando a tropa montada a pé “. (CERQUEIRA, 1974. p. 132).
“Os animais utilizados na Guerra, habituados a alfafa e milho, sofriam além da peste, com o excessivo calor e grande quantidade de vermes e parasitas do campo. Passavam fome devido à falta de forragens que, eram indispensáveis, por causa das marchas da cavalaria feitas com frequência e que os deixavam enfraquecidos.Também sofriam pelos ferimentos causados pela má qualidade de arreamentos fornecidos à cavalaria e artilharia.” (CÂMARA. op.cit.p.350).
Não se tem um número exato de equinos brasileiros, cavalos e burros, empregados durante a campanha do Paraguai. Acredita-se que esse número foi cerca de 24 000 animais utilizados pelos Exércitos de Linha, Guarda Nacional e Voluntários da Pátria. Maior parte desses animais morreu por sobrecarga de serviços, falta de ração adequada, ferimentos por arma de fogo e branca, e doenças infectocontagiosas: bacterianas, viroses e parasitárias não identificadas. Não havia um Corpo de médicos veterinários e enfermeiros para dar assistência médica aos animais doentes e acidentados.
Veterinário na Guerra do Paraguai
Não existia nos contingentes militares dos Exércitos da Guerra da Tríplice Aliança – Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai – veterinários para dar suporte logístico e assistência médica aos animais feridos, doentes e debilitados. De certa forma, essa ausência era justificada pela falta do ensino da medicina veterinária nos países litigiosos, que só veio acontecer, no pós-guerra, assim, oficial e cronologicamente instalados e inaugurados:
- ARGENTINA, 06 de agosto de 1883, fundada por belgas, com finalidade clínica, manejo racional das espécies, indústria de conservação de alimentos e saúde pública.
- URUGUAI, 23 novembro de 1903, fundada com doutrina americana, com objetivos de inspeção e controle sanitário da carne e leite, saúde dos animais, epizootias e enfermidades ectoparasitárias.
- BRASIL, 17 de julho de 1917, inspirada na escola francesa, com fins de: profilaxia, clínica animal, polícia anitária, inspeção de alimentos, profilaxia das doenças parasitárias e infecto-contagiosas, zoonoses, produção de soros e vacinas e melhoramento animal.
- PARAGUAI,25 de março de 1954, influenciada pelas escolas do Brasil, Uruguai e Argentina, com atribuições de: inspeção da qualidade e sanidade da carne, saúde pública, sanidade animal e produtos derivados, reprodução e melhoramento animal, produção de soros e vacinas e polícia sanitária animal. (FCV-UNLP, Ciências Veterinárias. 2000).
Veterinária Militar no Brasil
Não há dúvidas de que o baixo padrão racial dos cavalos empregados nas Guerras do Sul, período (1825-1870); as péssimas condições zootécnicas e sanitárias; o flagelo das doenças infectocontagiosas e parasitárias desconhecidas, causando milhares de mortes aos efetivos hipo; o precário estado sanitário dos bovinos utilizados na alimentação da tropa; a má conservação dos víveres e forragens; a falta de limpeza e higiene individual e coletiva dos soldados nos acampamentos; a contaminação e poluição da água de bebida com resíduos humano e animal, o meio ambiente insalubre e condições climáticas desfavoráveis e os apelos testemunhais dos grandes chefes que conduziram a Grande Guerra, do início ao fim: Manuel Luiz Osório, Duque de Caxias, Antonio de Sampaio e o Conde D`Eu, em relatórios técnicos administrativos aos seus superiores sobre a crítica situação logística e de saúde de apoio a tropa empregada nas várias batalhas e combates, foram argumentos bastantes e suficientes para que, na Reorganização do Serviço de Saúde do Exército, ocorrida em 06 de janeiro de 1910, conforme Decreto nº 2 222, do Sr. Presidente da República, Dr. Nilo Peçanha, houvesse oficialmente, a criação de uma Escola de Veterinária e um Quadro de Veterinários no Corpo de Saúde do Exército para suprir essa deficiência de profissionais no Brasil e no Exército, nascendo assim, a Veterinária Militar Brasileira.
Fonte: http://dichistoriasaude.coc.fiocruz.br