Por: Enrico L. Ortolani

Prof. Titular do Departamento de Clínica Médica da FMVZ -USP especializado em Clínica de Ruminantes

“Quod abundat non nocet” é um ditado latino, o qual traduzido ao pé-da-letra significa “o que abunda não prejudica”. Ter abundância de dinheiro é sempre bom; ter excesso de saúde, melhor ainda; ter uma plêiade de amigos é fenomenal. Mas nem sempre isso pode representar a verdade. Um dos exemplos mais marcantes na pecuária é o que acontece com boiadas em certas pastagens viçosas, as quais podem desencadear hipomagnesemia, ou seja, baixo teor de magnésio (Mg) no sangue, levando-os à morte.

Reza a lenda, que foi descoberto, na época em que o homem usava saia, em Magnésia, na Grécia, um mineral que recebeu o nome de magnésia “alba”, por ser branco. Muito tempo depois, em 1618, no sul da Inglaterra, um fazendeiro descobriu na sua pastagem uma poça d’água esbranquiçada que seus bois não tomavam nem amarrados. Curioso como ninguém, ele tomou aquela água e disse que se sentia rejuvenescido e que fazia bem para seus intestinos. Logo sua propriedade se tornou o “spa” da época. Um estudioso verificou que aquele líquido leitoso (MgSO4. 10H2O) era a magnésia alba, que mais tarde foi conhecido como leite de magnésia, que você já deve ter tomado. Daí se identificou o elemento Mg.

O Mg é muito importante para o organismo, e participa de dezenas de funções. Vou me concentrar em três delas: a ação sobre os músculos, o cérebro/cerebelo e o coração. Conceito chave: o Mg tem efeito contrário ao do cálcio. Quando o cérebro manda uma ordem (impulso elétrico) para um músculo se mexer este comando chega por meio dos neurônios, que são como fios elétricos ligados entre si, que partem do cérebro e vão até a porta de entrada dos músculos, num local chamado fenda neuromuscular. Para que o impulso elétrico passe para o músculo há necessidade da liberação de uma substância (acetilcolina) que executa a ordem para a contração do músculo. Quem regula a liberação de acetilcolina é o cálcio. Porém, se essa liberação for prolongada vai ocorrer um tipo de câimbra, ou seja, uma contração muscular continuada. Aí entra em ação o Mg, que secretado na fenda muscular impede que o cálcio libere mais acetilcolina. O Mg atua também no cérebro e no cerebelo (que controla os movimentos do corpo) facilitando a condução dos impulsos nervosos entre os milhões de neurônios existentes nestes órgãos vitais, evitando em casos extremos de deficiência as convulsões. O Mg também age sobre o coração fazendo com que seus batimentos sejam mais compassados, e em número e força de contração adequados. Legal né!

A hipomagnesemia ocorre em forma de surtos ou em casos isolados, geralmente de julho à novembro, muitas vezes após estresse, como grande movimentação do gado, transporte etc.  O estresse libera adrenalina que provoca súbita queda de Mg no sangue e no líquido cefalorraquidiano, baixando mais esses teores nos bovinos já deficientes deste mineral.

Animais aparentemente sadios, param de comer, passam a andar feito bêbados, caem, começam a tremer, “pedalar as pernas” e a ter convulsões com duração em média de 1 min, viram a cabeça para cima, salivam demais, tilintam os dentes, o batimento do coração vai às alturas e devido as convulsões, suas temperaturas retais sobem muito. Alguns animais morrem em 10 a 15 min, outros resistem por várias horas, mas dos que apresentam estes sintomas 70 a 80% batem as botas. Geralmente, os animais mais afetados são vacas nos primeiro dois meses após o parto, em especial aquelas acima de quatro anos.  Bovinos mais jovens podem ter o mal súbito, mas os mais velhos, em especial vacas, são mais sujeitas, pois o principal estoque de Mg no organismo são os ossos, e de acordo com que a idade avança a velocidade de retirada de Mg dos ossos, para repor a queda no sangue, fica muito reduzida.

De modo geral, pode-se dizer que os ruminantes têm mais chance de terem grave deficiência de Mg que os monogástricos (cavalo, suíno, cão, gatos, incluindo o homem). O motivo é relativamente simples. Enquanto que os monogástricos absorvem o Mg dos alimentos pelos intestinos, os ruminantes o fazem, na sua grande maioria, pelo rúmen, que tem uma menor capacidade de absorver o Mg que os intestinos.

A absorção do Mg pelo rúmen depende de muitos fatores para acontecer adequadamente. O principal deles é a concentração de potássio (K) e de sódio (Na) na comida, seguido do grau de acidez no líquido do rúmen, teor de energia, proteína, de fibra bruta e de gordura nos alimentos. Conhece-se bem que o Mg é absorvido do rúmen para o sangue por um processo chamado “bomba de sódio-potássio”. Quanto mais Na e menos K tiver nos alimentos, assim como quanto mais ácido for o ambiente ruminal mais eficiente é essa “bomba”. Acontece que dietas ricas em energia favorecem o surgimento de compostos (ácidos graxos de cadeia curta) que acidificam o rúmen, enquanto que alimentos ricos em proteína ou em nitrogênio não-proteico (ureia) geram mais amônia (NH3) que, ao contrário, alcalinizam o conteúdo ruminal (> pH 6,5). Por sua vez, dietas muito ricas em gordura, facilitam a combinação desta com o Mg, impossibilitando-o de ser absorvido; enquanto que alimentos ricos em fibra bruta favorecem a absorção de Mg, pois fazem com que fiquem mais tempo dentro do rúmen, para serem digeridos. Ufa!

Imagine uma pastagem nova de integração lavoura-pecuária com uso de capins temperados, estilo quicuio (não o da Amazônia) Tifton 85, Coast-cross, grama estrela e similares, ou de cultura de inverno (aveia, azevém, cevada etc.), ou mesmo milheto ou capim-Sudão, que crescem muito rápido e são muito viçosos e suculentos, pois foram muito adubados com potássio e nitrogênio. Beleza! Mas analisando sua constituição veremos que têm muita água, pouca fibra, alta proteína, muito potássio, o mínimo de sódio, menor quantidade de Mg, relativamente pouca energia e um pouco mais de gordura que as pastagens normais. Bingo, ideal para desencadear quadros de hipomagnesemia. Bovinos pastejando por uma ou duas semanas tais pastagens já podem ser a doença. No Brasil também foram descritos surtos de hipomagnesemia em bois que pastavam em locais em que tinha sido acabado de colher arroz ou milho.

Muitos que estão lendo agora já devem ter colocado as barbas de molho, mas raramente esta doença é citada em boiadas pastando capins tropicais, que concentram menor quantidade de potássio e de proteína e contêm maior quantidade de fibra e não baixam tanto os teores de magnésio. Uma outra atenuante são as raças, visto que os zebuínos parecem ser mais resistentes à hipomagnesemia que os taurinos.

Bovinos com hipomagnesemia podem ter o quadro inicial revertido se tratados com grande quantidade de Mg na veia¸ (200 mL de sulfato de magnésio 20%). Um experiente veterinário catarinense salvou muitos animais assim, mas segundo o que me confidenciou nos casos mais avançados o bovino até melhora muito, mas não consegue se levantar devido às graves lesões musculares já desenvolvidas. Que triste!

Em pastagens problemáticas, deve-se evitar colocar vacas com mais de 4 anos, dando preferência para animais mais novos. Seria lógico corrigir o solo, para aumentar o teor de Mg nos capins, com calcário dolomítico, que contêm Mg, mas os resultados na prática não são bons. Pode-se adicionar no suplemento mineral, 20% de óxido de magnésio, mas se não aumentar o palatalibilizante industrial ou melaço, o gado rejeita e não consome o suplemento. Por fim, deve-se moderar no uso de fertilizantes ricos em potássio e nitrogênio, em culturas que são problemáticas para provocar a hipomagnesemia. Um joguinho de xadrez!

PASTO VERDEJANTE NEM SEMPRE É SINÔNIMO DE SAÚDE

BOVINO COM QUADRO SUGESTIVO DE HIPOMAGNESEMIA

TRATAMENTO RÁPIDO E PRECOCE PODE SALVAR

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