Clássicos da ciência, biologia e medicina  

Histórico

Até o ano de 1798, portanto, quase no final do Séc. XVIII, predominava no mundo científico e acadêmico, entre médicos e filósofos, quanto à origem das doenças, a Teoria Miasmática, formulada pelos médicos inglês Thomas Sydenham (1624-1689 ) e italiano Giovanni Maria Lancisi (1654-1720), de que as doenças teriam origem nos miasmas. Essa teoria defendia que a doença era causada por um miasma composto por odores venenosos e cheiros fétidos, provenientes de pântanos, de poças d’água estagnada e de matéria orgânica em decomposição. Esse modelo abiogênico da origem e transmissão de doenças também foi defendido por Hipócrates na Antiguidade, 480 a.C,  que usou o termo ” miasma ” no seu Livro: Ares, Águas e Lugares. O pai da medicina pensava que se um grande número de pessoas estivesse afetado pelo mesmo mal, a causa deveria ser algo comum a todos os acometidos: o ar. Contágio e miasma não eram noções conflitantes no âmbito das teorias hipocráticas e mesmo galênicas. ” O ar transportaria os miasmas, e estes causariam o desequilíbrio dos humores orgânicos, ou seja, a doença “. ( CZERESNIA, 1997 ). 

O mundo científico permaneceu miasmático até o ano de 1546 quando o médico italiano Girolando Fracastoro, Veronês / Itália, (1478 -1553), publicou seu trabalho – De contagione et contagiosis morbis et curatione – ( sobre o contágio e as doenças contagiosas e sua cura ) no qual definiu o contágio como sendo um tipo de infecção, que passava de um indivíduo para o outro, por intermédio de seres vivos que se reproduziam. Denominou esses seres vivos de “seminaria contagionum”  ( sementes de contágio) e definiu os modos de transmissão das doenças infecciosas que passava de um individuo para outro por contato direto, por intermédio de fômites  ou à distância. Surgia assim, a Teoria do Contágio, colocando por terra a Teoria Miasmática, que perdurava desde Hipócrates, há 2 500 anos.

Essas “sementes” da moléstia ou “seminária prima” seriam específicas para cada doença. A doença instalar-se-ia quando as “sementes”, transmitidas de um indivíduo a outro, por contato direto ou por meio de roupas e objetos, alterassem os humores, os princípios vitais do corpo. A partir dessa ideia constituiu-se a Teoria do Contágio, que concorreu com a doutrina atmosférico-miasmática até finais do século XIX e propiciou a busca por causas específicas das doenças

A confirmação definitiva da Teoria do Contágio viria em 1876, graças aos estudos de Louis Pasteur (1822- 1895) e Robert Koch (1843-1910), que estabeleceram a Teoria Germinal ou Teoria Bacteriana, que modificou profundamente as representações sobre o corpo e sobre as relações homem-ambiente. Segundo esta teoria, biogênica, todo germe, em princípio, é considerado ofensivo ou perigoso para a saúde e causadores de diversas doenças.  ( PAMELA. Fisioterapia, 9 de julho )

Descoberto o enigma das doenças, germes, que assolavam a humanidade como a varíola, peste negra, cólera, antraz etc, faltava, agora, descobrir o mecanismo biológico de como combater e preveni-la.  Coube ao médico inglês Edwad Jenner      (1749-1823) e ao químico bacteriologista francês  Louis Pasteur (1822-1895), o pioneirismo dessa fantástica epopéia de salvar a humanidade de pandemias e episódios catastróficos envolvendo as doenças:  A descoberta das vacinas !

A primeira vacina natural do médico Edward Jenner ( 1 798 )

Dr. Edward Jenner nascido em Berkeley, Inglaterra, em maio de 1749, formou-se em medicina em Londres. Como médico  naturalista, regressou a Berkeley em 1773 para praticar a medicina e se dedicar a outras atividades científicas como zoologia, ornitologia, horticultura e geologia. Como médico ruralista resolveu, estudar e  realizar experimentos relativos à varíola, que, na época, era uma das doenças mais temidas pela humanidade. A varíola matava cerca de 400 mil pessoas por ano no mundo. Sua pesquisa baseou-se numa sabedoria popular que dizia que as pessoas que contraíam varíola bovina quase nunca tinham a varíola humana (1796). Aproveitando-se de sua especialidade  profissional de médico e métodos científicos, do que chamamos hoje, método dedutivo/indutivo experimental, inoculou  pus de lesões de varíola bovina (cowpox) das mãos de uma jovem ordenhadora, Sarah Nelms, na pele de um garoto James Phipps, de oito anos. Depois de alguns dias de doença branda, James se recuperou o suficiente para Jenner inocular, pela segunda vez, no menino, uma amostra purulenta de uma bolha da varíola humana (smallpox). James não desenvolveu a varíola, e nem ninguém que teve contato próximo com ele, o que significava que estava imune à varíola. (HOLLINGHAM, R. BBC Future )

Por viver o cotidiano em ambiente rural em contato direto com produtores rurais exercendo a medicina prática, observando os casos clínicos de seus pacientes e ouvindo histórias e contos campesinos sobre as doenças rurais, Jenner, certamente foi influenciado por práticas ruralistas existente na época, ou seja:  a variolização da varíola bovina em pessoas para evitar a morte e agravantes da varíola humana. Os antecedentes a Jenner mostram e registram os seguintes casos: Em 1721, a escritora inglesa Mary Wortley Montagu (1689-1762), após consultar a Sociedade Royal de Medicina, da qual era sócia, pediu para um médico inocular sua filha e seu filho mais velho, de cinco anos de idade. ( Essa operação  é considerada a primeira inoculação profissional na Inglaterra). Em 1774, a variolização foi realizada pelo fazendeiro Benjamin Jesty (1736-1816), o qual aplicou em membros de sua família, o que preveniu o desenvolvimento da doença em épocas de epidemia. Também essa prática já era realizada na China, 1700  e no  Império Otomano, a partir de 1716. (KHRONOS, Revista de História da Ciência, N 7, agosto 2019).

Quando apresentou sua experiência à Royal Society – a Academia de Ciências do Reino Unido: “Um Inquérito sobre as Causas e os Efeitos da Vacina da Varíola”, 1797, suas provas foram consideradas insuficientes. O médico realizou novas inoculações em outras crianças, inclusive no próprio filho. Em 1798, o seu trabalho foi reconhecido e publicado. Em um primeiro momento, sua pesquisa foi ridicularizada, sendo denunciado como repulsivo o processo de infectar pessoas com material colhido de animais doentes. No entanto, os benefícios da imunização logo se tornaram evidentes.

O reconhecimento em seu país só foi alcançado após médicos de outros países adotarem a vacinação e obterem resultados positivos. A partir de então, Edward Jenner ficou famoso mundialmente por ter inventado a vacina. Em 1799, foi criado o primeiro instituto vacínico em Londres e, em 1800, a Marinha britânica começou a adotar a vacinação

Para uma linha de pesquisadores e estudiosos da História de Medicina, Jenner não descobriu a vacina, e sim apenas popularizou um conceito comum chamado de “variolação”. Na época, variolação significava usar as crostas secas de um paciente com varíola para dar imunidade a outra pessoa. Em uma pessoa variolada, a doença se manifestava de maneira mais suave. (FioCruz, História das Vacinas, 2020)

A primeira vacina sintética de Louis Pasteur (1885)

Dr. Louis Pasteur, professor, físico-químico, cientista  e bacteriologista, nasceu em Dole, França, em 1822. Formou-se professor de Letras pelo Colégio Royal de Besançon, próximo a Arbois e graduou-se em Química e Física pela Escola Normal Superior de Paris em 1842 e doutorado em Ciências em 1847. Nesse período, como Diretor Científico da Escola, especializou-se em Cristalografia. Exerceu o cargo de professor de Química em Dijon e depois na Universidade de  Estrarburgo.  Em 1854, tornou-se professor de química e decano da Faculdade de Ciências da Universidade de Lille e em 1873, acadêmico da Academia de Medicina da França.

De sua extraordinária e prodigiosa vida de mestre, cientista e pesquisador, que perdurou por mais de 14 lustros, 73 anos (1822-1895), deixou um fantástico legado de ensinamentos e descobertas pioneiras para o desenvolvimento científico e progresso das ciências,  nas seguintes áreas:

– Físico-química. Utilizando-se de seus conhecimentos de cristalografia, associou a cristalografia à química e à óptica sob feixe de luz polarizada. Ao estudar os cristais simétricos e dissimétricos, constatou que os produtos da natureza viva são dissimétricos e ativos sobre a luz polarizada, enquanto o contrário ocorre com os produtos de natureza mineral. Esse trabalho, forneceu a base da estereoquímica e revelou a linha de demarcação entre o mundo orgânico e o mineral.

–  Indústria. Uma grande descoberta de Pasteur para a indústria foi a Pasteurização, 1862, que além dos estudos sobre os micróbios que causavam a fermentação de vinhos, pão e leite, descobriu o tratamento térmico  para preservar esses produtos alimentícios e impedir sua deterioração.

– Microbiologia. A Teoria da Biogênese foi a sua maior contribuição para a microbiologia.  Louis Pasteur se destacava em diversas descobertas e criava diversas teorias: Teoria microbiana da fermentação. Pasteur explicou o porquê acontecia a contaminação por álcool durante o processo de fermentação; ele descobriu a presença de diversos micróbios, denominados leveduras, que utilizavam o açúcar presente nas frutas e os convertiam em álcool na ausência de oxigênio. Já na presença do oxigênio, o azedamento das bebidas se dá pela presença de micróbios diferentes, que transformam o álcool em ácido acético, vulgarmente conhecido como vinagre. Teoria microbiana. Também afirmava que os micróbios eram os responsáveis pelo aparecimento de doenças em animais e humanos. Pasteur é considerado o ” Pai da Microbiologia ” (DIAS, S.I. IMPG).

Doenças Animal e Humana

Doenças Animal

Pasteur não tinha formação nem especialização em ciências biológicas, por isso socorreu-se da colaboração de biólogos e veterinários para realizar seus modelos de pesquisa sobre as doenças envolvendo animais domésticos.

Suas pesquisas iniciais tinham o objetivo de encontrar uma vacina, termo ” virus -vaccin “, micróbio atenuado que ele mesmo abreviou para “vaccin”, no início de suas pesquisas, num discurso apresentado na Academia Francesa de Ciências.  Usando modelos biológicos, animais domésticos, em 1879, na França, começou a pesquisar a cólera aviária , uma doença causada pela bactéria, hoje conhecida como Pausteurella multocida. Pasteur acidentalmente deixou que uma cultura desse microorganismo envelhecesse na bancada do laboratório enquanto seu assistente tinha saído de férias. Quando o assistente retornou e tentou infectar intencionalmente as galinhas com essas culturas envelhecidas, as aves não adoeceram e permaneceram sadias. Pasteur manteve essas galinhas para um segundo experimento, no qual foram desafiadas novamente, desta fez com uma cultura fresca de P. multocida  sabiamente capaz de matar as galinhas. Para surpresa do pesquisador as aves ficaram resistentes à infecção e não morreram.  Em um salto notável intelectual, Pasteur imediatamente associou que este fenômeno era semelhante em princípio ao uso da varíola bovina para a vacinação de Jenner.

A pesquisa contra a raiva teve como modelo o Coelho.  Pasteur usou medulas espinhais coletadas de coelhos infectados com raiva e depois utilizou as medulas secas como seu material vacinal. O processo de secagem tornava efetivamente os vírus avirulentos. Embora Pasteur utilizasse somente microorganismos vivos em suas vacinas, não demorou muito até que o trabalho de Daniel Salmon demonstrasse nos EUA que os microorganismos mortos também poderiam ser utilizados como vacinas. Ele demonstrou que uma cultura morta pelo calor de uma bactéria chamada Salmonella choleraesuis, tida como causadora da cólera suína, podia proteger pombos contra a doenças causada por esse micróbio. (TIZARD,IR.Imunlogia Veterinaria, São Paulo).

A suinocultura francesa também foi alvo da pesquisa de Pasteur. Auxiliado pelo biólogo Louis Thuillier, assistente de seu laboratório e o veterinário Edmond Nocard, elaboraram em 1882, uma vacina contra a erisipela suína provocada pela bactéria ,

Erysipelotrix  rhusiopathiae, que causava septicemia cutânea crônica nesses animais, jovens e adultos,  levando à morte milhares de animais e perdas significativas na economia francesa. ( SANFER, Salud Animal. México).

Em todas às pesquisas realizadas com animais, Pasteur teve a colaboração de insignes médicos veterinários, contemporâneos de sua  época, como: Bouley, Chauveau, Guérin, Galtier, Salmon, Nocard, Ramon, etc, pesquisadores ou professores das renomadas  Escolas  veterinárias francesas.

Doença Humana

Durante as diversas fases da história, as questões relativas à causação das doenças foram tratadas sob vários pontos de vista. Produto da ira divina, conseqüência de conjunções astrais, situações climáticas ou geográficas foram, por muito tempo, explicações para o surgimento de doenças, principalmente das epidêmicas. Somente com o desenvolvimento dos estudos sobre os microorganismos e as suas formas de atuação nos organismos superiores, a medicina obteve um lastro científico capaz de explicar os fatores etiológicos de diversas doenças e sua forma de propagação. ( TEIXEIRA, A.L. FioCruz, 1995. )

Sobre a raiva. De todas as descobertas, pesquisas e experimentos realizados por Louis Pasteur, a descoberta da vacina contra a raiva canina, ( hidrofobia ), transmitida entre os cães, lobos e raposas a humanos, foi a descoberta mais notável e esplêndida de toda sua vida científica e acadêmica. Esse feito glorioso e inédito para a medicina e saúde humana e animal só foi possível pelos acúmulos de conhecimentos técnicos adquiridos nas suas experiências laboratoriais com animais e participação dos médicos veterinários. Nesse particular, no caso da raiva, os experimentos laboratoriais feitos com coelhos e cães teve a colaboração do médico veterinário Pierre Victor Galtier, professor da Escola Nacional de Veterinária de Lyon, especialista em fisiologia, patologia e infectologia.

Mas, como foi a descoberta da vacina sintética anti-rábica de Pasteur ?

A vacina antirrábica de Pasteur levou cerca de 5 anos para ser produzida (1880 -1885). Nesse período de experimentos, ensaios e pesquisas de campo e laboratoriais, teve colaboração dos professores: médico bacteriologista, Pedro Paulo Emilio Roux, veterinário Pierre Victor Galtier e do biólogo Louis  Thuillier, os dois primeiros membros da Academia de Ciências da França.

Antes de ser aplicada pela primeira vez em humanos, menino Joseph Meister, Hospital Sta  Ephigênia, Paris, 1885, a vacina atenuada em modelo biológico de coelho e galinha, ( 60 a 90 passagens ),  fundamentou-se nos estudos de Galtier que já estudava a raiva entre os animais desde 1879, e provou que a doença tinha tropismo pelo sistema nervoso e, quando o vírus aplicado via hemática em carneiros e coelhos, não provocava a doença. ( TCCThais, UFSC, 2012 ).

A vacina produzida com a cepa ( Pasteur vírus ) selecionada em laboratório com medula dissecada de coelhos, foi aplicada por 10 dias em doses sucessivas, via subcutânea e  garantiu a cura de Joseph Meister, mordido por um cão raivoso.  O  sucesso desse novo tratamento vacinal se repetiu outras vezes levando um número cada vez maior de pessoas mordidas a seu laboratório,  vindas não só de Paris e do interior da França, como também de outros países, até da longínqua Rússia – tratamento de 11 camponeses mordidos de cães e lobos.  Em 1886, de 726 pessoas tratadas, apenas quatro não puderam ser salvas e, mesmo assim, porque, mordidas no rosto ou na cabeça, só foram levadas a seu Laboratório muito tempo depois de atacadas.

O pequeno laboratório de Pasteur já não comportava tantas pessoas em busca de tratamento contra a raiva. Por isso, ele solicitou à Academia de Ciências da França a construção de um estabelecimento especial para vacinação contra raiva, que acabou sendo construído com donativos vindos de todas as partes do mundo. Entre os doadores, estava o imperador brasileiro Pedro II, ( 100 mil francos ) cujo busto ornamenta a biblioteca do estabelecimento, chamado, naturalmente, Instituto Pasteur. Inaugurado em novembro de 1888, espalhou-se pelo mundo e  hoje é um dos mais importantes centros de pesquisa do mundo.  (Superinteressante, Louis Pasteur, Ciência nas ruas, 2016).

As diferenças científicas entre as vacinas de Pasteur e Jenner

Do ponto de vista científico e conhecimentos microbiológico e imunológico atuais podemos afirmar que decorrido um período de tempo de 87 anos entre as vacinas de Jenner, Inglaterra ( 1798 ) e Pasteur, França ( 1885 ), houve um grande avanço científico e biotecnológico na sua produção e aplicação.

Edward Jenner, médico clínico ruralista, com conhecimentos médicos, após trabalhar 25 anos com a varíola bovina  (Vaccinia virus), testes e experimentos, com agricultores e pecuaristas em Berkeley, provou a eficácia da ” inoculação ” ou             ” variolação ” contra a varíola humana, que já era tratamento médico preventivo de rotina naquela  Região,  praticada  pelos médicos ingleses:  Daniel Sutton (1735 -1819), John Fewster ( 1738 -1824) e John Grover ( 1774 – 1865 ).

Jenner, incentivado pelo médico prof. John Hunter, ( 1728 -1793 ) famoso  cirurgião do Hospital St. George, Londres, do qual era adjunto, apenas aperfeiçoou, oficializou e deu publicidade a  inoculação.

Louis Pasteur, físico e microbiologista, utilizando de todos os conhecimentos científicos da época, e com a colaboração de veterinários e biólogos, elaborou suas vacinas fundamentado em pesquisas laboratoriais, testes “in vitro” e experimentos em animais. Na preparação da vacina antirrábica humana, que durou cerca de 5 anos, teve por base, as experiências com vacinas animal: cólera aviária, raiva canina e antraz.

O Protocolo científico formulado por Pasteur em 1885, para a produção de uma vacina, (etapas) aperfeiçoado, modificado e ajustado aos tempos modernos, é ainda  utilizado como plataforma básica, na tecnologia atual, para a obtenção dos IFAs, Ingredientes  Ativos Farmacológicos  e fabricação desses imunobiológicos atuais.