Castração precoce quadruplica risco ortopédico em cães de grande porte, mas segue benéfica para gatos
Durante décadas, uma única recomendação guiou clínicas, tutores e campanhas públicas: castrar o quanto antes cães e gatos. De preferência, antes do primeiro cio. Era a fórmula perfeita para prevenir doenças, evitar reproduções indesejadas e garantir uma vida mais saudável para os bichinhos. Mas a ciência evoluiu, e o que antes era tratado como verdade absoluta começa a ser questionado até por quem sempre defendeu a castração precoce.
Evidências recentes apontam que os efeitos da castração precoce podem variar bastante conforme a raça, o porte, o sexo e até o estilo de vida do animal. Em algumas raças caninas, por exemplo, observou-se aumento na incidência de certos tipos de câncer, distúrbios comportamentais e doenças ortopédicas após a retirada precoce dos hormônios sexuais.
“Hoje, a medicina veterinária vive uma fase mais crítica, científica e dinâmica. Os métodos de tratamento evoluíram, e os protocolos são construídos com base em evidências sólidas, não mais em fórmulas prontas ou verdades absolutas. Vivemos um tempo em que a informação circula com rapidez, é questionada com profundidade e permanece aberta à revisão. Diferente do passado, em que poucos veículos, hoje muitas vezes considerados frágeis, definiam décadas de condutas, agora a ciência avança justamente porque aceita o debate, a dúvida e a constante atualização”, afirma o médico-veterinário Eros Luiz de Sousa.
De acordo com o especialista, a castração permanece sendo uma ferramenta extremamente importante para o controle populacional e a promoção da saúde dos animais, sim. No entanto, sua indicação deve ser feita com critério, levando em consideração as necessidades específicas, o histórico e as características de cada animal, reconhecendo que cada um é único e pode responder de forma diferente ao procedimento.
Segundo o veterinário, um Pastor-alemão e um Shih-tzu não têm as mesmas necessidades fisiológicas, porque são raças com tamanhos, metabolismos e predisposições genéticas diferentes. Assim, castrar ambos da mesma forma e na mesma idade pode ser inadequado, já que fatores como o porte do animal, o tempo de maturação sexual e o risco de determinadas doenças variam significativamente entre raças. “Por isso, a decisão sobre o momento e o tipo de castração deve ser individualizada, para evitar possíveis efeitos adversos à saúde do animal”, alerta.
Cenário
Uma pesquisa conduzida por cientistas da Universidade da Califórnia, Davis, e publicada na revista Frontiers in Veterinary Science (2024), analisou dados de mais de uma década envolvendo 35 raças de cães e concluiu que a castração precoce pode aumentar o risco de doenças ortopédicas em até quatro vezes em determinadas raças grandes, como Labradores e Golden retrievers.
Os resultados indicaram que a castração antes de um ano de idade pode aumentar os riscos de distúrbios articulares, como displasia coxofemoral e ruptura do ligamento cruzado cranial, além de certos tipos de câncer, como hemangiossarcoma e linfoma, dependendo da raça e do sexo do animal. Por exemplo, fêmeas da raça Golden retriever castradas antes de um ano apresentaram um risco aumentado de desenvolver hemangiossarcoma, um tipo agressivo de câncer vascular.
Além disso, um estudo publicado em 2024 no Caderno Pedagógico reforça que a castração precoce pode estar associada a um aumento na incidência de distúrbios articulares e incontinência urinária, variando conforme a raça e a idade da castração.
“Essas evidências sugerem que a decisão sobre o momento adequado para castrar um cão deve ser personalizada, levando em consideração fatores como raça, porte, sexo e estilo de vida do animal. É fundamental que tutores consultem profissionais experientes e atualizados para avaliar os riscos e benefícios específicos antes de optar pela castração precoce”, afirma Souza.
Já em felinos, os impactos parecem ser diferentes. “Nos gatos, os benefícios da castração precoce ainda superam os riscos na maioria dos casos, especialmente quando pensamos em controle populacional e prevenção de comportamentos indesejados, como a marcação territorial com urina. Mas, mesmo assim, é importante avaliar cada caso. Nem toda decisão precisa ser automática”, observa.
O especialista relata ainda que, diante de todos os dados, a questão deixou de ser se castrar, e passou a ser quando, por que e como fazê-lo. “Além dos fatores técnicos e das evidências científicas, é essencial que o tutor busque orientação com médicos veterinários atualizados, com formação sólida, mente aberta e comprometimento com a inovação e a ética. A escolha do momento certo, aliada a um procedimento bem conduzido, pode ser determinante para o sucesso, e para a tranquilidade do tutor. Hoje, informação não falta. Por isso, decisões mal embasadas e erros evitáveis se tornam cada vez mais inaceitáveis”.
A escolha, então, precisa ser mais do que um procedimento de rotina: precisa ser definida em uma boa conversa com um profissional qualificado. “Nosso papel, como profissional de saúde animal, é oferecer informação atualizada, transparente e sem vieses. O tutor tem o direito de decidir, mas precisa decidir bem informado”, reforça.
Por fim, Souza destaca que, com a transformação pela qual passa a medicina veterinária, os avanços nos exames laboratoriais e nos estudos longitudinais tornam possível uma abordagem mais individualizada e segura. “A medicina personalizada é uma tendência irreversível, tanto para os humanos quanto para nossos amigos de outras espécies. O que queremos é promover saúde com responsabilidade: castrar, sim, mas com consciência, critério e ciência, sem seguir modismos nem tradições cegas”, conclui.