A anatomia do bico das aves compartilha de características em comuns e possuem adaptações de funções específicas para cada espécie, o bico das aves é uma estrutura dinâmica que está em constante crescimento, composta por: osso, camadas vasculares, queratina, derme, articulações, inervações, espaços aéreos e uma camada germinativa. Anatomicamente é denominada de ranfoteca, sendo composta pela ranfoteca maxilar (rinoteca) e ranfoteca mandibular (gnatoteca). O bico desempenha diversas funções essenciais para o desenvolvimento das aves, como apreensão, localização de alimentos, interação social, interação sexual, locomoção, marcação de território, termorregulação e construção de ninhos.

A ranfoteca nas aves é extremamente vascularizada, sendo irrigada pela artéria carótida, que ascende ao pescoço formando inúmeras anastomoses em direção à rinoteca (parte superior) e a gnatoteca (parte inferior). A ranfoteca é inervada pelas divisões maxilar, mandibular e oftálmica do nervo trigêmeo. O desgaste e a reposição da queratina na ranfoteca ocorrem continuamente pela abrasão mecânica, conforme as estações do ano e pelas particularidades dos indivíduos e suas populações de acordo com o uso do bico, ou seja, quanto maior a frequência de uso, teremos mais reposição de queratina.

Em algumas aves, como nos papagaios, a rinoteca é substituída completamente em cerca de 6 meses, enquanto nos tucanos a rinoteca cresce aproximadamente 0,5cm em um período de dois anos. A taxa de crescimento da gnatoteca é cerca de duas a três vezes mais rápida que a da rinoteca.

Os bicos saudáveis conseguem exercer suas funções plenamente, apresentando como características definidas o aspecto liso e simétrico, ou seja: não possui descamações ou alterações na textura, não apresenta descolorações, detêm morfologia e comprimento característico da espécie e um alinhamento correto entre rinoteca e a gnatoteca. Qualquer alteração desses aspectos pode representar doenças do bico das aves.

Fonte: PEIRÓ, R.; GÓMEZ, J. Ilustracion da ranfoteca e suas subdivisoes: rinoteca e gnatoteca em tucano de bico verde. 2011.

Durante o exame físico da ave, para observar o bico, devemos utilizar um espéculo próprio para o porte da espécie ou gazes colocadas entre a gnatoteca e a rinoteca para realizar a abertura da cavidade oral do animal. Durante a inspeção devemos observar algumas considerações importantes do bico:

  • Cor e manchas: características para a espécie, faixa etária e período reprodutivo;
  • Presença de áreas de necrose, feridas, rachaduras, fraturas, perfurações, descamações, cicatrizes;
  • Presença de sangramento ou coágulos;
  • Existência de crescimento excessivo;
  • Existência de irregularidades e assimetrias;
  • Coloração das mucosas: hiperêmicas, anêmicas, cianóticas;
  • Língua: forma e cor (também variam entre as espécies);
  • Superfície interna da cavidade: presença de massas ou placas, coloração, tumores, aumentos de volume e parasitas;
  • Laringe: coloração;
  • Coana: verificar se há obstrução, aumento de volume, corpos estranhos, placas diftéricas, feridas.

A função normal do bico pode sofrer interferências por deficiências congênitas ou adquiridas, como deficiências embrionárias de ácido fólico, biotina e ácido pantotênico em galináceos ou adquiridas, como malformações durante o desenvolvimento do neonato no ninho, traumas por impacto durante o voo, necrose do bico por perfurações, lacerações, avulsões e rachaduras. As principais causas observadas são:

Infecciosas

Conjuntivite moderada em Nymphicus hollandicus (calopsita) – Setor de Animais Selvagens – Universidade Federal Fluminense.

Podendo ser bacterianas, provocadas por bactérias gram-negativas ou gram-positivas; virais, geralmente propiciada por herpevirus, parvovirus, poliomavirose, poxvirose, circovirus, poliomavirus; fúngicas, comumente ocasionadas por fungos dos gêneros Aspergillus e Candida e Cryptococcus; e por último, parasitárias, causadas por ácaros do gênero Knemidokoptes (que levam ao crescimento excessivo do bico), Trichomonas (que desenvolvem placas caseosas amareladas na cavidade oral, língua, faringe, esôfago, inglúvio e cloaca), e nematóides da família Capillariidae e Syngamus trachae.

Fonte: ZOOPLUS. Doença de bico e de pena causada por circovirus [Imagem de uma cacatual]. 2022. Disponível em: https://www.zooplus.pt/magazine/wp-content/uploads/2022/07/PBFD_2.jpeg. Acesso em: 27 maio 2024.

Formação de placas esbranquiçadas no palato causada por Candida albicans; Pombo de coleira (Streptopelia risoria).ResearchGate. (2006). Doenças do Sistema Digestório das Aves (Revisão Bibliográfica).

Nutricionais

Geralmente são causadas por desnutrição, deficiência de vitamina A e D e desequilíbrio de cálcio e fósforo (comuns em aves de rapinas que são alimentadas apenas com pintinhos de 1 dia, carne ou filhote de roedores) que levam ao desenvolvimento de uma doença óssea nutricional metabólica e hepatopatias (devido à lipidose e hemocromatose) que o desequilíbrio metabólico desencadeia.

Tóxicas

Podem ser causadas por micotoxinas do grupo dos tricotecenos ou por apreensão de alimentos com resíduos de defensivos agrícolas/agrotóxicos.

Físicas

As deficiências físicas da ranfoteca em aves podem ocorrer principalmente devido a falta do desgaste natural do bico que cresce continuamente, devido a falta de enriquecimento ambiental no recinto da ave, como utilização de poleiros de madeira, objetos que possam gerar abrasão mecânica e sementes duras para o desgaste da queratina do bico, gerando um crescimento exacerbado.

Alérgicas

Substâncias químicas presentes em sprays, desinfetantes ou produtos de limpeza.

Traumáticas

Danos traumáticos no bico das aves podem ocorrer por uma variedade de razões, como avulsão do bico por conflitos entre aves ou predadores, trauma direto por colisão durante o voo, mastigação de objetos extremamente duros, luxação da palatina, e doenças pré-existentes que fragilizam a ranfoteca.

Neoplásicas

O bico das aves também é propenso a tumores como carcinomas que afetam primariamente o sistema tegumentar e gastrointestinal das aves, e a maioria das neoplasias é removida cirurgicamente quando a localização anatômica permite. A utilização da quimioterapia para tratamentos de neoplasias em aves ainda é um procedimento pouco estudado e a terapia de radiação não é considerada como um tratamento prático devido ao pequeno porte das aves. A ranfoteca pode desenvolver neoplasias que formam massas visíveis no bico e na cavidade que atrapalham a respiração das aves, a apreensão e deglutição do alimento, além de causar o crescimento anormal da ranfoteca e favorecer a necrose ou hemorragia do tecido. Os tumores mais comuns nos bicos das aves são os carcinomas de células escamosas, melanoma, fibroma e fibrossarcoma e papilomatose.

Malformações

Certas condições genéticas ou de desenvolvimento podem resultar em malformações do bico, como mutações ou por hereditariedade, desenvolvimento embrionário anormal no ovo ou durante o cuidado dos pais com o filhote ainda no ninho. Como exemplos de malformações observamos o braquignatismo, prognatismo, ausência de rinoteca ou gnatoteca e bico em tesoura.

Prevenção

  • Boa higiene e limpeza do ambiente: Manter um ambiente limpo e higienizado é fundamental para prevenir infecções e irritações na ranfoteca das aves. Isso inclui a limpeza regular da gaiola, a troca de água fresca diariamente e a remoção de fezes e restos de comida.
  • Dieta balanceada: Uma dieta equilibrada e nutritiva é essencial para manter a saúde do bico das aves. Ofereça uma variedade de alimentos frescos, como sementes, frutas, vegetais, legumes e ração comercial de alta qualidade para garantir que todas as necessidades nutricionais e alimentares sejam atendidas.
  • Ambiente adequado: Proporcione um ambiente adequado para as aves, incluindo temperatura e umidade adequadas, boa ventilação, substratos adequados para ajudar a manter a saúde respiratória e enriquecimento ambiental adequado para o desgaste do bico e bem estar da ave.
  • Monitoramento regular: Observe regularmente as aves quanto a quaisquer sinais de problemas na ranfoteca, como inchaço, secreção ou dificuldade para se alimentar e respirar. A detecção precoce de problemas permite um tratamento mais eficaz e pode ajudar a prevenir complicações graves.
  • Visitas semestrais ao veterinário: Agende consultas regulares com um veterinário especializado em animais silvestres para exames de rotina e monitoramento da saúde das aves. O veterinário pode fornecer orientações específicas sobre cuidados preventivos e identificar quaisquer problemas de saúde precocemente.

Em conclusão, as doenças que atingem a ranfoteca em aves podem apresentar desafios importantes para a saúde e o bem-estar desses animais encantadores. Contudo, por meio de conhecimento apropriado, medidas preventivas e intervenção veterinária oportuna, é possível reduzir os riscos e oferecer cuidados eficazes. É fundamental que os tutores de aves estejam alertas aos sinais de problemas no bico das aves e ajam prontamente em busca de atendimento veterinário quando necessário. Ao priorizarmos a saúde oral e geral das aves, podemos assegurar uma vida mais longa ao animal.

Referências:

Bennett, R. A. Surgery of the avian beak. In: Annual Conference & Expo With the Association of Mammal Veterinarians: Proceedings of the Association of Avian Veterinarians. Seattle (pp. 191-195). 2011.

Fecchio, R. S.; Rossi Jr., J. L.; Gioso, M. A. Reparo de bico em aves: correções, restaurações e próteses. Avanços na medicina de animais selvagens: medicina de aves. Curitiba: Grupo Fowler. 2009.

Lumeij, J.T. GASTROENTEROLOGY. In: Pare, Jean. Avian medicine: principles and application. The Canadian Veterinary Journal, v. 38, n. 9, p. 484-486, 1997.

Manucy, T. K.; Bennett, R. A.; Greenacre, C. B.; Roberts, R. E.; Schumacher, J.; Deemm, S.L. Squamous Cell Carcinoma of the Mandibular Beak in a Buffon’s Macaw (Ara ambigua). Journal of Avian Medicine and Surgery, Vol. 12, No. 3 (Sep., 1998), pp. 158-166

Speer, B.; Powers, L. V.. Anatomy and disorders of the beak and oral cavity of birds. Veterinary Clinics of North America: Exotic Animal Practice, v. 19, n. 3, p. 707-736, 2016.

Vilani, R. G; Schmidt, E.M.S. Avanços na medicina de animais selvagens: medicina de aves. Curitiba: Grupo Fowler, p. 197-223, 2009.

 

Autores: Beatriz Pereira Coelho¹,²; Eduardo Fellipe Melo Santos Soares¹; Marcos Paulo Gonzaga Nascimento Nazareth; Ana Carolina da Rocha Santos Elattar; Ana Clara Fontes Brum; Rafaella de Medeiros e Silva – Discentes da Liga de Animais Silvestres (LIAS) do Curso de Medicina Veterinária da UFRRJ
Sob a supervisão de Carlos Alexandre Rey Mathias – Coordenador da Liga de Animais Silvestres e Docente do Curso de Medicina Veterinária da UFRRJ
Foto de capa: Tucano. Freepik.com