Em recente trabalho intitulado “A demografia Médico Veterinária Precisa Ser Controlada”, o Médico Veterinário Antônio Felipe Paulino de Figueiredo Wouk, membro da Comissão Estadual de Educação da Medicina Veterinária (CEEMV) do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Paraná, analisa a relação de Médicos Veterinários por mil habitantes no Brasil de 0,7 quase o dobro dos índices referenciais da Europa, Estados Unidos ou Canadá. Outro dado alarmante é número destes profissionais que cresceu 23% em quatro anos de 117.000 em 2017 para 154.000 em 2021, com uma média de 12.300 novos profissionais por ano em 493 cursos identificados no presente ano, contra 32 existentes no ano de 1980, número este maior do que a soma de todos os cursos do restante do mundo.
Para uma condição de geométrico crescimento dos cursos, é de se esperar uma formação adequada deste contingente de graduandos ai incluindo a estrutura física das instalações e equipamentos próprios, condições acadêmicas específicas, competência dos docentes pela formação própria e atividade profissional requerida para o desenvolvimento de um programa de aprender fazendo e o que é mais importante, uma seleção séria e compromissada dos futuros discentes, que no geral, trazem uma formação deficiente dos ciclos básicos.
Diretrizes Curriculares Nacionais
Através da Resolução nº 3 de 2019 a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, Instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina Veterinária definindo como perfil do formando egresso/profissional uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, apto a compreender e traduzir as necessidades de indivíduos, grupos sociais e comunidades, com relação às atividades inerentes ao exercício profissional, no âmbito de seus campos específicos de atuação em saúde animal, saúde pública e saúde ambiental, clínica veterinária, medicina veterinária preventiva, inspeção e tecnologia de produtos de origem animal, zootecnia, produção e reprodução animal. Além disto ter conhecimento dos fatos sociais, culturais e políticos; de economia e de administração, capacidade de raciocínio lógico, de observação, de interpretação e de análise de dados e informações, bem como dos conhecimentos essenciais de Medicina Veterinária, para identificação e resolução de problemas visando a sustentabilidade econômica, social, ambiental e o bem-estar animal.
Observa-se assim o quão complexa e diversificada é a necessidade de requisitos mínimos para que a instituição de ensino possa atender aos preceitos legais e oferecer ao mercado de trabalho, um profissional realmente apto a exercer com competência o mister que a amplitude de atuação do Médico Veterinário tem ao seu dispor nas áreas das Ciências Agrárias e da Saúde, Produção Animal, Produção de Alimentos, Saúde Animal, Saúde Pública e Saúde Ambiental.
Infraestrutura Física
Como exemplos destes requisitos previstos nas diretrizes curriculares obrigatórias estão a infraestrutura laboratorial e hospital/clínica veterinária próprios, para atendimento de animais de produção e de companhia e a fazenda de ensino com modernas tecnologias de produção, abrangendo todas as etapas nas áreas essenciais de formação do profissional, quais sejam, bovinocultura de corte e leite, avicultura, suinocultura, equideocultura, ovino/caprinocultura e piscicultura.
Quantos destes 493 cursos dispõem desta estrutura mínima para se constituírem de fato em locais de ensino próprio e competente para um futuro profissional? Quantos destes se restringem apenas ao finge que ensina e finge que aprende? Deve-se considerar ainda que a grande maioria dos cursos formados nos últimos 20 ou 30 anos vem da iniciativa privada em que os valores, muitas vezes expressivos, das mensalidades pagas pelos discentes ou suas famílias não são retribuídos sob a forma de um ensino adequado como deveria ser, levando a uma verdadeira condição enganosa para os estudantes que sonham com um futuro promissor na profissão que escolheram.
Objeta-se que o Brasil possui cursos tanto em nível público quanto privado que se ombreiam com os melhores de muitos outros países inclusive da França, berço da Medicina Veterinária, tendo 14 acreditados no Sistema latino-americano de Acreditação de Cursos ARCU-SUL, mas que no universo dos 493 existentes talvez se constituam em raras exceções,
Corpo Docente
Quanto ao corpo docente é de se esperar que reúna os conhecimentos teóricos e principalmente de atuação profissional em suas áreas de ensino, para que possam conduzir os seus programas de curso com a competência e o dinamismo necessários para a formação do futuro profissional. Não restam dúvidas de que estas qualificações são encontradas em parte relevante dos docentes que, com profunda competência e conhecimentos específicos se dedicam ao ato sublime de ensinar sabendo.
Entretanto num oceano de 493 cursos é de se supor que se tenha ainda alguns que, por visarem apenas o lucro financeiro, por falta de docentes com formação adequada ou os dois, se valham de artifícios diversos na tentativa de oferecerem ao discente um arremedo de ensino. A este respeito o Médico Veterinário Antônio Felipe Paulino de Figueiredo Wouk em seu trabalho supracitado avalia que “Uma análise ética e moral pela qualidade do ensino impõe uma pergunta: onde encontrar tantos docentes bem formados, com experiência profissional prévia, com maturidade intelectual, para lecionar em 493 cursos? Boa parte de quem está ensinando deveria ainda estar aprendendo. Profissionais são contratados como sumidades multidisciplinares, porque vão “ensinar” três, quatro, até cinco disciplinas ou mais, com baixos salários, tudo para diminuir os custos”.
Há de se considerar que ainda dentro do previsto nas recentes diretrizes curriculares, o curso de Graduação em Medicina Veterinária deverá manter permanente programa de atualização e capacitação dos Docentes, com vistas à melhoria qualitativa do seu trabalho na graduação, ao maior envolvimento com o Programa e seu aprimoramento em relação à proposta formativa contida no projeto pedagógico, por meio do domínio conceitual e pedagógico, que englobe estratégias de ensino ativas, pautadas em práticas interdisciplinares, de modo a assumirem maior compromisso com a transformação da escola médica veterinária, a ser integrada à vida cotidiana dos docentes, estudantes, trabalhadores e usuários dos serviços veterinários, advindo daí a questão de quantos cursos cumprem estas recomendações?
No Guia “Estratégia de Ensino Aprendizagem para Desenvolvimento das competências Humanísticas – Proposta para Formar Médicos Veterinários para um Mundo Melhor” o Conselho Federal de Medicina Veterinária aborda esperar do docente a maturidade para se auto avaliar quanto ao seu preparo e buscar os meios para elevar sua aptidão para novos desafios, escolhendo as estratégias ou propostas adaptáveis a maioria das situações de uma forma consciente e fundamentada.
Ao colocar a necessidade do aluno em primeiro plano e vislumbra-la sob o ponto de vista da combinação de conhecimentos, habilidades e atitudes como preceitua o conceito de competência, o professor pode direcionar as atividades, bem como o espirito das aulas para a formação do profissional adaptável de que a sociedade tanto precisa, um Médico Veterinário pronto para atuar como um agente transformador.
É conveniente assinalar que na dinâmica dos acontecimentos o aluno de hoje poderá ser o Mestre de amanhã e que, uma formação deficiente, acionará o ciclo vicioso em que a má qualidade do ensino tenderá a se perpetuar ou até a se expandir, levando ao declínio da importância da profissão.
A Forma de Ingresso nos Cursos
O estudo da Medicina Veterinária requer, como nas demais profissões, que o candidato à vaga traga conhecimentos gerais adquiridos nos ciclos básicos o que em muitos casos não é conseguido tendo em vista esta formação básica deficiente. Aliado a este fato está a forma de seleção dos futuros acadêmicos que, em função do número excessivo de instituições a oferecerem vagas, conforme as considerações anteriores, há no geral uma relação de mais vagas oferecidas do que o número de candidatos a ocupa-las, fazendo com que em um processo classificatório, portanto sem determinação de nota mínima, qualquer resultado diferente de zero habilite o candidato a uma das vagas existentes.
Dentro do critério descrito é fácil compreender que o ingressante terá poucas aptidões para acompanhar o desenvolvimento das disciplinas que compõem o curso, pretexto que muitas instituições utilizam para a tão na moda flexibilização dos critérios das avaliações pedagógicas, que em muitos casos nada mais é do que os pseudos trabalhos acadêmicos, os famosos “copia e cola” incluídos no finge que ensina e finge que aprende abordado anteriormente.
O Moderno Ensino a Distância
O denominado ensino a distância, EAD na Medicina Veterinária constitui um arremedo de sistema de “ensino-aprendizagem” onde as aulas são ministradas de forma virtual ou não presencial e, portanto, inadequadas a formação do futuro profissional que necessita associar os conhecimentos teóricos com a prática durante todo o desenvolvimento do curso.
A portaria 2.117 de 2019 do Ministério da Educação permite que as Instituições de Nível Superior introduzam a oferta de carga horária na modalidade a distância na organização pedagógica e curricular de seus cursos de graduação presenciais, até o limite de 40% da carga horária total do curso, exceção apenas para os de medicina onde esta modalidade não está permitida.
É de se compreender que a oportunidade permitida pela portaria, muito se encaixa nas pretensões daquelas instituições que apenas visam lucro financeiro não se importando com a qualidade do ensino, e dos pretensos candidatos as vagas oferecidas, que por desconhecimento ou por facilidade, julgam estar aí a chance de se tornarem profissionais com pouco esforço.
Já se tem conhecimento de cursos de Medicina Veterinária sendo ministrados na sua totalidade no sistema a distância, uma aberração aos princípios básicos de desenvolvimento de um ensinamento de forma séria a menosprezar a importância de uma profissão esteio do agronegócio brasileiro.
O que esperar para o futuro
O Brasil é um país eminentemente agropecuário que na pecuária experimenta números significativos em relação aos demais países do mundo. Somos o segundo maior produtor de carne bovina e de frango e o maior exportador mundial destes alimentos, o quarto em carne suína e expressivo também em laticínio, pescado e ovos. Nesta pujança alavancada pelos investimentos públicos e privados, está o trabalho competente e fundamental do Médico Veterinário que precisa estar comprometido com uma formação adequada e o aprimoramento constante de seus conhecimentos. Se as modernas técnicas de criação e manejo dos animais de produção precisam ser acompanhadas por uma formação acadêmica adequada, o quantitativo e as condições atuais de cursos não permitem vislumbrar o encaminhamento deste mesmo padrão de qualidade de ensino.
No mercado Pet cujo direcionamento acadêmico é incentivado pela maioria dos cursos ao gosto dos estudantes, que entendem que gostar de “bicho” é o pré requisito fundamental para o estudo da Medicina Veterinária, o Brasil desponta como o segundo maior mercado mundial e as técnicas clínicas e cirúrgicas, cada vez mais sofisticadas, requerem uma formação condizente com estes avanços e as cada vez maiores expectativas dos tutores dos animais, fato que também não se apresenta em grande parte dos cursos.
Enquanto isso as instituições de ensino relegam a um plano inferior os ensinamentos nas áreas de saúde pública onde a Medicina Veterinária sempre ocupou e ocupa posição de destaque científico em prol da saúde humana nos controles das zoonoses, no desenvolvimento de fármacos e nos trabalhos relevantes na área de epidemiologia.
Por oportuno é notória a observação de que algumas áreas da Medicina Veterinária por serem comuns a outras profissões, como a de saúde pública, levam a competição por espaços profissionais em que aqueles melhores preparados, tem mais chances de ocupa-las em detrimento dos menos aptos ou inaptos.
A Medicina Veterinária
Esta então é a Medicina Veterinária, conceituada como atividade imprescindível ao progresso socioeconômico, à proteção da saúde humana e animal, ao meio ambiente, ao bem-estar da sociedade e dos animais e que requer dos que a exercem a formação adequada, conhecimento científico e constante aprimoramento profissional, condições cada vez mais relegadas em detrimento de ganhos financeiros, daqueles que vislumbram no ensino não mais uma fonte de saber para os futuros profissionais, mas uma forma de comércio como qualquer outra, cada vez mais descompromissada com o estudante e com o país.