A ordem Chiroptera representa a segunda maior ordem dentro dos mamíferos em número de espécies e a primeira em número de indivíduos. Excluindo o homem e, possivelmente os roedores, os quirópteros são também os mamíferos mais amplamente distribuídos sobre o planeta.
Morcegos são relativamente desconhecidos da população pois são ativos à noite, escondidos de dia e evitam o contato com os humanos.
Possivelmente essas são as razões pelas quais eles não eram tão estudados com tanta intensidade como os outros mamíferos antes da virada do século. A partir de então passou a chamar a atenção pelas especializações de comportamento e pelo aumento na compreensão da sua importância para a economia e para os problemas de saúde do homem e dos animais. Tais fatos aumentaram o interesse sobre os morcegos e incrementaram os estudos em enormes proporções.
A relação do homem com os morcegos é antiga. Há tempos os morcegos participavam como ingredientes de poções curativas usadas nas antigas aldeias na Europa e África. Além disso, há muito eles servem como fonte alimentar para o homem na África e na Ásia. Na era moderna, os morcegos, direta ou indiretamente, continuam a ser utilizados de várias maneiras. A principal delas era a exploração do guano como rica fonte de nitrogênio utilizado como componente de fertilizantes. Mais recentemente, as pessoas descobriram o lado do morcego que servia como um animal de estimação. Deixava-se repousar dentro de casa durante o dia ou em locais construídos especialmente para abrigo de morcegos, e até deixando alimentos a sua disposição.
Ao passo que aprofundamos os conhecimentos sobre esses animais, passamos a compreender a sua existência. Todos eles fazem parte de uma complexa relação dinâmica de coexistência e interdependência com outros indivíduos (quer seja animal, vegetal e até mesmo mineral) pertencentes à nossa biosfera. Aos estudarmos as inter-relações entre diferentes segmentos da natureza, começamos a perceber a importância individual da existência de cada animal.
E com os morcegos não seria diferente. Eles cumprem importantes tarefas a fim de manter esse equilíbrio dinâmico que é componente inerente da Natureza. De acordo com o seu hábito alimentar podemos atribuir a eles diferentes importâncias ecológicas (Figura 1):
- Os insetívoros fazem o controle biológico de insetos sendo que muitos deles são prejudiciais ao homem e às lavouras. Um único indivíduo pode comer mais de 1000 mosquitos em uma noite.
- Os frugívoros são responsáveis por uma parte do reflorestamento de áreas degradadas, já que defecam em pleno vôo várias sementes que estão aptas a germinar ou deixam cair as frutas que carregam durante o seu voo.
- Os pescadores e os carnívoros, ao se alimentarem de pequenos peixes e animais, participando da cadeia alimentar ajudando a controlar pequenos roedores e anfíbios.
- Os polinívoros e os nectarívoros são importantes a muitas espécies de plantas que abrem suas flores durante a noite e tem seu pólen carreado para outras plantas viabilizando sua reprodução.
- Os hematófagos, apesar de possuírem um hábito alimentar um tanto quanto diferente, também têm sua importância ecológica, introduzindo algumas doenças, como a Raiva, em determinadas populações, mantendo-as em equilíbrio numérico.
À medida que o homem penetrou em novas áreas, antes “inexploradas”, para construir moradias, cultivar seu alimento, explorar a natureza e criar seus animais, ele não só interferiu na existência natural dos morcegos e de outros animais, como permitiu que eles passassem a conviver mais intimamente com o homem. O morcego morava em cavernas, em furnas, sob a folhagem e nos ocos das árvores e então passaram a viver dentro ou bem perto da moradia do homem. Passaram a se alimentar em volta das casas buscando os insetos que são atraídos pelas luzes das casas, as frutas que existem em abundância no pomar, pequenos animais que se encontram nas casas, além de buscarem e conseguirem abrigo na moradia humana.
Dessa maneira os morcegos passaram a ser vistos pelos mais leigos como sendo um problema devido aos prejuízos decorrentes da transmissão de doenças aos homens e aos animais. Mas vale ressaltar que somente em situações especiais os morcegos nos trazem problemas. E nenhum desses problemas são tão difíceis de solucionar utilizando-se de medidas preventivas para evitar este íntimo convívio com eles e, desta maneira, não ter preocupações em relação à saúde individual e coletiva tanto do homem como dos animais.
Por muito tempo os morcegos foram acusados pela transmissão de diversas doenças, porém muito poucas delas realmente tinham uma correlação com eles. O fato é que com o crescente interesse do homem por esses animais, muitos foram os microrganismos que foram designados como sendo transmitidos direta ou indiretamente pelos morcegos
Mais de 200 tipos diferentes de vírus de 27 famílias já foram isolados ou detectados nos morcegos como a Raiva, uma das mais conhecidas e até as mais recentes descobertas como Hendravirus, Nipah, Ebola e Marburg, além de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa) e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio). O papel na epidemiologia dessas doenças ainda está sendo estudado, mas demonstra a incrível receptividade dos morcegos aos mais diferentes tipos de vírus. Bactérias patogênicas como Pasteurella multocida, Borrelia sp, Mycobacterium sp, Leptospira spe Brucella sp. também são largamente citadas na literatura científica e responsáveis por importantes doenças zoonóticas.
Na tabela 1 podemos observar um resumo dos principais agentes patogênicos ou doenças identificadas ou associadas aos morcegos.
Vírus | Raiva; Encefalomielite Equina do Leste e Venezuelana, Febre Amarela, Hendravirus; Nipah vírus; Ebola vírus; Corona vírus; Hepadna vírus (Hepatite B humana); Hepaci vírus (Hepatite C humana); Vírus do Oeste do Nilo, Hantavirus, Influenza; Chicungunya, Dengue, Zika |
Bactérias | Pasteurella multocida, Bartonella spp; Borellia spp, Mycobacterium sp, Leptospira sp e Brucella sp, Salmonella sp, Rickettsia rickettsi |
Fungos | Histoplasma capsulatum, Paracoccidioides brasiliensis. Scopulariopsis, Sporothrix schenckii, Candida albicans, Microsporum gypseum |
Protozoários | Trypanosoma cruzi; Plasmodium spp., Leishmania donovani |
Diversos vermes parasitas (trematódeos, cestódeos e nematódeos) já foram registrados em várias espécies de morcegos. Muitos são específicos desses hospedeiros. Alguns helmintos humanos e de animais domésticos já foram encontrados em morcegos. Essas ocorrências podem ser acidentais. Ocasionalmente ácaros de morcegos podem ser encontrados em seres humanos. Pode ocorrer quando morcegos se abrigam em casas ou quando pessoas entram em abrigos de morcegos e podem provocar dermatites leves, raramente sérias.
Alguns percevejos da Família Cimicidae parasitam morcegos e homens. Especula-se que se adaptaram ao homem quando este passou a usar cavernas e abrigos similares como habitações humanas. Duas famílias de moscas (Nicteribiidae e Streblidae) estão especialmente adaptadas aos morcegos. Ambas hematófagas e podem potencialmente ser vetores de vários agentes patogênicos. Porém, sem evidências da participação dessas moscas na transmissão de doenças ao homem.
Todos esses patógenos vêm sendo estudados com maior profundidade nos dias atuais. Seus papéis na epidemiologia das doenças dos animais e humanas vem sendo elucidados e discutidos. Mas como foi dito anteriormente, os morcegos possuem um papel muito importante no equilíbrio da interrelação entre as espécies animais e vegetais. A natureza precisa da presença maciça desses animais. Algumas plantas precisam dos morcegos para se reproduzirem. Essas e outras plantas tem seus frutos espalhados para diferentes locais onde germinarão e crescerão. Com a presença de novos espécimes vegetais em uma região, se observa a fixação de novas espécies animais que se alimentarão dessas plantas atraindo a presença de predadores que virão à busca desses animais.
Quando o homem constrói suas habitações e promove a arborização de sua vizinhança, ele está produzindo condições favoráveis para a atração e fixação de morcegos nessas áreas. Portanto, entendendo que a presença dos morcegos é benéfica, o homem precisa aprender a conviver com esses animais. A presença de morcegos em nossos telhados não deve ser encarada com preocupação, mas deve ser monitorada. O importante é realizar ações preventivas no sentido de impedir sua fixação nas edificações. Para tal, há inúmeras medidas que podem ser tomadas para evitar a presença de morcegos tais como promover o adequado encaixe entre as telhas e eliminar o espaço existente entre as telhas e a alvenaria com o uso de massa de cimento, eliminar o espaço entre aparelhos de condicionamento de ar e a parede e fechar com portas os acessos para o sótão ou forro. Muitos morcegos não moram em nossas habitações, mas as visitam a procura de alimento tal como as frutas dispostas nas fruteiras em nossas cozinhas. É importante instalar telas de proteção daquelas para prevenção de acidentes com crianças o que impedirá o acesso desses animais às áreas internas da residência ou apartamento.
Caso já exista uma colônia instalada, o Serviço Municipal de Saúde do município deve ser acionado para realizar uma avaliação e verificar se a presença dos morcegos esteja causando risco de acidentes ou transmissão de doenças. Caso positivo, e somente nesse caso, a colônia poderá ser manejada. Deve-se lembrar que estes animais são protegidos pela Lei de Proteção à Fauna e Lei de Crimes Ambientais Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 e só poderão ser manejados por equipe competente autorizada. O desaparecimento dos morcegos poderá resultar em desequilíbrio e os inconvenientes resultantes poderão ser piores que os causados pela proximidade destes animais.
Devido ao risco da atividade, novas alternativas de manejo foram desenvolvidas sem a necessidade de manipulá-los. Ao final do dia, deve-se identificar o local por onde os morcegos entram e saem e colocar uma tela ou rede protetora sobre a abertura vedando todos os lados da tela, exceto a parte de baixo, de forma que os que estiverem dentro poderão sair, mas nenhum conseguirá voltar (Figura 02).
Uma outra alternativa, é a instalação de tubos rígidos de pvc ou garrafas pet com a extremidade voltada para o exterior revestida por plástico ou tela nos locais de entrada dos animais. O equipamento deve permitir a saída dos morcegos mas impossibilitando o seu retorno (Figura 03). Deve-se manter essas aberturas por alguns dias, até que todos os morcegos tenham ido embora e posteriormente realizar a retirada do equipamento a e vedação da abertura.
Como se viu podemos enumerar diversos benefícios que estes animais nos podem trazer, bem como seus malefícios. Como toda relação entre o homem e os animais devem ser recobertas de cuidados, com os morcegos não poderia ser diferente. Essa convivência pode ser benéfica ou maléfica para ambos, tudo dependerá do grau de interferência que um proporcionará para com o outro.
A melhor solução é viabilizar uma relação onde um não interfira no dia-a-dia do outro. Para tal, é dever do homem proporcionar as condições ideais para esse convívio pacífico e harmonioso. Se medidas preventivas forem adotadas a fim de se evitar a presença dos morcegos perto do homem, muitos desses males descritos anteriormente podem ser evitados.
Autor: Prof. Clayton B. Gitti – Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública do Instituto de Veterinária da UFRRJ. Pesquisador Associado do Instituto Resgatando o Verde
Foto abertura: U.S. Fish and Wildlife Service Headquarters via Wikimedia.