Por Sávio Freire Bruno e Daphnne Chelles Marins
Características:
O pato-mergulhão (Mergus octosetaceus) é uma das aves aquáticas mais raras do mundo, com população estimada inferior a 250 indivíduos. Sua caracterização anatômica e morfológica única reflete a adaptação evolutiva à vida nos ecossistemas hídricos, particularmente aos rios de parte do continente sul-americano, como descreveremos a seguir.
Esta espécie apresenta porte médio, entre 48 e 55 cm de comprimento (Sick, 1977), e plumagem majoritariamente cinza, com peito rajado em que predomina o branco, penacho nucal preto e desenvolvido que se estende pela região occipital, sendo no macho comumente de maior tamanho. Na maioria dos anatídeos destacam-se em suas asas conjuntos de penas brancas de belíssimo contraste, formando, como no caso do pato-mergulhão, um espelho branco bem marcante.
Na maior incidência de luz, os tons esverdeados metalizados da cabeça e pescoço tornam-se mais intensos, particularmente na região auricular e nas laterais do pescoço (Bruno, 2013). Frequentemente, erguem o corpo sobre a água e batem suas asas vigorosamente (Fig. 1), uma das maneiras de diminuir a umidade de sua plumagem, ou seja, de mantê-las mais secas e livres de impurezas, garantindo assim sua força e eficiência.

Fig. 1. As asas do pato-mergulhão apresentam um espelho (ou espéculo) branco bem marcante. Na imagem, também é possível observar os tons esverdeados metalizados da plumagem de sua face e parte do pescoço. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, 2007. Foto: Sávio Freire Bruno.
O bico é negro, fino, estreito, retilíneo e recurvado nas extremidades, particularmente na porção superior, conferindo-lhe um formato de gancho, características que facilitam a captura de presas aquáticas. Tanto a porção superior quanto a inferior (Fig. 2) são serrilhadas (Bruno, 2013; ICMBio, 2020).

Fig. 2. O bico do pato-mergulhão é serrilhado nas bordas laterais internas, devido a expansões queratinizadas em ambas as porções, propiciando excelente adaptação para capturar presas, como o lambari (Astyanax sp.). Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, 2008. Foto: Sávio Freire Bruno.
Os pés dos adultos, de tons vermelhos róseos, com sutis variações que incluem possivelmente fatores como umidade e a incidência luminosa, são providos de membranas interdigitais que auxiliam na propulsão subaquática (Fig. 3), enquanto o corpo aerodinâmico contribui para a eficiência no mergulho.

Fig. 3. O pato-mergulhão adulto possui os pés com tons vermelhos róseos. A membrana interdigital, presente desde o nascimento, auxilia no processo natatório. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, novembro de 2024. Foto: Sávio Freire Bruno.
Os jovens, já em fase adiantada de crescimento e tamanho próximos a de um adulto, distinguem-se, especialmente, por apresentar a porção inferior do bico em tons róseo-alaranjados e, na plumagem, faixas oculares de tonalidade branca e um topete (penacho nucal) ainda em processo primário de formação (Fig. 4).

Fig. 4. Os jovens patos-mergulhões, neste caso em idade entre três e quatro meses, apresentam a parte inferior do bico clara, de tons róseo-alaranjados, pinceladas brancas ao redor das órbitas oculares, e ainda são desprovidos de um penacho nucal desenvolvido. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, novembro de 2024. Foto: Sávio Freire Bruno.
O pato-mergulhão foi oficializado o embaixador das águas brasileiras durante o VIII Fórum Mundial das Águas, realizado em Brasília em 2018. Este título destaca a importância da espécie como símbolo da conservação dos recursos hídricos no Brasil.
Distribuição geográfica:
Do ponto de vista histórico, o pato-mergulhão tem registro de populações que existiram no passado, tanto no Brasil quanto na Argentina e no Paraguai. Estima-se que esta ave esteja extinta em mais de 90% de sua área de distribuição original (ICMBio, 2014). Na Argentina, o pato-mergulhão vivia em rios da província de Missiones, no nordeste desse país, sendo que o último avistamento deste raríssimo anatídeo ocorreu em 2002, quando um único exemplar foi observado no rio Uruzú, na bacia do rio Urugua-í. No Paraguai, o pato-mergulhão é somente uma vaga lembrança na memória dos que tiveram a chance de avistá-lo, sendo o último registro de sua presença datado de 1984 (Hughes et. al., 2006; Bruno, 2013).
No Brasil, o pato-mergulhão – embora com distribuição geográfica restrita e fragmentada, a qual incluía o Complexo Florestal Atlântico e o Cerrado e registros históricos para os Estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Bahia e Tocantins – só tem hoje sua presença conhecida nos Estados de Minas Gerais, Goiás e Tocantins, com populações estabelecidas, especialmente, em regiões de influência do bioma Cerrado.
Atualmente, portanto, o pato-mergulhão ocorre exclusivamente no Brasil, concentrando-se em rios de águas cristalinas e com as maiores populações conhecidas em Unidades de Conservação e seus respectivos entornos, que são: o Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, GO e a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, TO, como também, na Reserva Particular do Patrimônio Natural Campo Alegre, GO (ICMBio, 2014). A maior população do pato-mergulhão encontra-se no Parque Nacional da Serra da Canastra, MG (Bruno, 2013, ICMBio, 2014).
Essas áreas são caracterizadas por águas correntes, substratos rochosos e vegetação ripária bem preservada (Fig. 5), que fornecem as condições necessárias para sua alimentação e reprodução (BRUNO, 2013; ICMBio, 2024).

Fig. 5. O habitat preferencial do pato-mergulhão são rios de águas límpidas, com corredeiras, substratos rochosos e livres de poluição. Nesses ambientes, a espécie sobrevive e se reproduz. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, julho de 2009. Foto: Sávio Freire Bruno.
Alimentação:
A dieta do Mergus octosetaceus é composta predominantemente por peixes, com maior frequência alimentar para o lambari (Astyanax sp.), além de crustáceos e insetos aquáticos (Fig. 6). Este perfil alimentar está intimamente associado às condições do habitat, especialmente em rios de águas claras e correntes, com leito rochoso e elevada disponibilidade de presas. Tal especialização torna a espécie particularmente vulnerável às alterações ambientais, como a degradação da qualidade da água e a redução da conectividade dos habitats (BRUNO, 2013; ICMBio, 2020).

Fig. 6 – Pato-mergulhão jovem com um peixe recém-capturado. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, novembro de 2024. Foto: Sávio Freire Bruno.
Reprodução:
No aspecto reprodutivo, o pato-mergulhão exibe comportamento monogâmico, com laços estreitos entre o casal. Nos estudos realizados na Serra da Canastra, MG, o período reprodutivo inicia-se em maio e se estende até agosto, mês em que nascem os últimos filhotes da temporada (Bruno e Bartmann, 2003), embora os cuidados parentais permaneçam nos meses subsequentes.
Os ninhos geralmente são construídos às margens do rio em cavidades, tanto arbóreas quanto em barrancos, rochosos ou não, mas também em fendas rochosas. Somente a fêmea incuba os ovos (Fig. 7).

Fig. 7 – Fêmea de pato-mergulhão à entrada de um ninho em cavidade arbórea, às margens do rio São Francisco. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, julho de 2007. Foto: Sávio Freire Bruno.
A postura varia quase sempre de cinco a oito ovos, de coloração branca cremosa, que são incubados exclusivamente pela fêmea durante aproximadamente 33 dias. O macho de pato-mergulhão, por sua vez, passa boa parte do seu tempo em vigília, nas proximidades do ninho, emitindo sinais com seu diversificado repertório vocal, como por exemplo, no caso de potenciais ameaças que se aproximem da área de nidificação.
Quando a fêmea deixa o ninho para realizar suas atividades fisiológicas, assim como, interagir com o macho de pato-mergulhão, ela costuma cobrir seus ovinhos com as penas que foram retiradas de seu próprio corpo para a composição do ninho. Esse procedimento evita que os ovos percam uma quantidade expressiva de calor enquanto a fêmea mantém-se temporariamente afastada do ninho (Fig.8). Lembremos que calor interno aos ovos é necessário à sobrevivência e ao desenvolvimento dos embriões neles presentes, sendo garantido pela temperatura corporal da fêmea ao chocá-los ao longo do período de incubação.

Fig. 8 – Interior do ninho em cavidade arbórea. Observa-se que os ovos foram temporariamente recobertos com penas da fêmea de pato-mergulhão. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, julho de 2008. Foto: Sávio Freire Bruno.
Os filhotes deixam o ninho pouco mais de um dia após a eclosão, sendo conduzidos pelos pais ao longo do rio, para áreas seguras e ricas em alimento (BRUNO, 2013; 2022). O casal de patos-mergulhões cuida dos filhotes com imenso zelo (Figuras 9 e 10).

Fig. 9 – O casal de patos-mergulhões mantém um estreito vínculo, que se estende aos filhotes sob seus cuidados parentais, constituindo uma família de admirável coesão. Entorno do Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, agosto de 2008. Foto: Sávio Freire Bruno.

Fig. 10 – O casal de patos-mergulhões mantém os filhotes sobre sua guarda, sempre atentos a eventuais ameaças. À frente do grupo, o macho, com seu penacho nucal mais avantajado em relação à fêmea, no lado superior da foto. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, agosto de 2017. Foto: Sávio Freire Bruno.
Ameaças e Conservação:
Atividades antrópicas que provoquem alterações hidrológicas nos rios ou quaisquer modificações na estrutura da paisagem são potenciais ameaças à sobrevivência da espécie. É preciso enfatizar que o pato-mergulhão não é tolerante a impactos no ambiente. A poluição físico-química e a orgânica, que alteram a qualidade da água, são extremamente preocupantes.
Entre as principais ameaças enfrentadas pelo pato-mergulhão estão a perda e degradação de habitat, incluindo o desmatamento, além da poluição hídrica de diversas naturezas, a construção de barragens e o turismo desordenado.
Neste contexto, a expansão das atividades agropecuárias é potencialmente poluidora, não só por estar associada ao aumento do nível de sedimentos em suspensão na água devido às diferentes formas de erosão, como também pela frequente disseminação de poluentes solúveis, como defensivos agrícolas, adubos e esgotos, que afetam o equilíbrio dinâmico dos rios e contribuem para o desaparecimento de espécies, como o pato-mergulhão (Bruno, 2013; ICMBio, 2014).
A construção de barragens, por sua vez, altera fortemente a dinâmica e a estrutura dos rios, tanto a jusante como a montante, comprometendo o equilíbrio de suas águas e a sobrevivência de muitas espécies que as habitam, incluindo o pato-mergulhão (ICMBio, 2014). A projeção para a expansão de hidrelétricas no Brasil é especialmente preocupante.
O turismo ecológico, incluindo a observação de aves, com grande potencial para fortalecer o desenvolvimento socioeconômico regional baseado em ações primariamente sustentáveis, quando realizado de forma desordenada e inconsequente, resulta em expressiva ameaça à sobrevivência do pato-mergulhão. Dentre tais atividades, também reconhecidas como turismo de natureza, somam-se os esportes aquáticos, como o rafting, canoagem e bóia-cross, esses, igualmente, extremamente preocupantes nas áreas onde há populações reconhecidas do pato-mergulhão. É preciso reconhecer que a espécie não só se reproduz como exerce cuidados parentais ao longo do ano, e o trânsito de humanos no curso do rio perturba a paz necessária para a sobrevivência e reprodução da espécie. Soma-se a tudo isso a poluição sonora, associada ou não a tais esportes.
Os incêndios nas áreas de ocorrência do pato-mergulhão e a presença de espécies invasoras também comprometem a biodiversidade e a qualidade ambiental como um todo, sendo ameaças a serem consideradas na conservação de habitats como um todo.
Todos estes fatores comprometem a qualidade ambiental dos rios que ainda abrigam o pato-mergulhão. Lembremos que a fragmentação dos habitats também reduz a variabilidade genética das populações remanescentes, aumentando sua vulnerabilidade às pressões ambientais e às mudanças climáticas. Em consequência, o pato-mergulhão está classificado como “Criticamente em Perigo” tanto pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil (MMA, 2022), quanto pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), e é considerado uma espécie-chave nos programas de conservação da biodiversidade em áreas de Cerrado e de Mata Atlântica (ICMBio, 2020).
Enquanto ativo, o Plano de Ação Nacional do ICMBio para a conservação do pato-mergulhão estabeleceu diretrizes para mitigar essas ameaças e recuperar populações da espécie. Entre as ações propostas estão o monitoramento dos indivíduos, a restauração de habitats críticos, a fiscalização ambiental e a sensibilização da população local. Estas iniciativas demandam colaboração entre órgãos governamentais e instituições de ensino e pesquisa (BRUNO, 2013; ICMBio, 2020).
Em 2024, com o encerramento do 2° Ciclo do PAN /Pato-mergulhão, a espécie foi “recepcionada”, ou seja, alocada no Plano de Ação Nacional para Conservação de Aves do Cerrado e Pantanal (2° Ciclo, 2023-2028) sendo as ações direcionadas a este táxon reunidas em um objetivo específico (ICMBio, 2024).
Mesmo com todos esses desafios, esforços para o estabelecimento de populações sob cuidados humanos (ex situ: fora do habitat natural) de patos-mergulhões, visando principalmente a reintrodução da espécie, já são uma realidade. Pesquisas a campo sobre o comportamento da espécie em ambientes naturais (in situ), como as realizadas em Unidades de Conservação e entorno, avançam a cada ano, além de investigações sobre as futuras áreas a serem priorizadas para soltura e monitoramento. Todos esses esforços, graças a um coletivo de profissionais que se uniram em torno do Plano de Ação para a Conservação do Pato-mergulhão (PAN / Pato-mergulhão), então gerenciado pelo CEMAVE / ICMBio, se tornaram uma realidade, embora confrontada com enormes desafios e mudanças de percurso, à exemplo do próprio encerramento do respectivo Plano direcionado à esta espécie em perigo crítico de extinção, como supracitado.
A conservação do pato-mergulhão depende, pois, de esforços integrados que conciliem proteção do meio ambiente, pesquisa científica, ações integradas de manejo e educação ambiental, de forma a garantir a manutenção dos ecossistemas aquáticos e a sobrevivência desta espécie emblemática.
Referências:
BRUNO, Sávio Freire; BARTMANN, Wolf. 2003. Brazilian Mergansers in Serra da Canastra National Park, Minas Gerais State, Brazil. TWSG News 14, 53-54.
BRUNO, Sávio Freire. PATO-MERGULHÃO: Biologia e conservação do pato-mergulhão (Mergus octosetaceus) no Parque Nacional da Serra da Canastra, MG e entorno. Niterói: EdUFF, 2013.
Bruno, Sávio Freire. O pato e o rio: a saga da sobrevivência. 1. ed. Rio de Janeiro: Projeto Cultural, 2022.
Hughes, Baz ; Dugger, Bruce; Cunha, Hélio Jorge; Lamas, Ivana; Coerck, Jaqueline; Lins, Lívia; Silveira, Luís Fábio; Andrade, Renata; Bruno, Sávio Freire; Rigueira, Sônia; Barros, Yara de Melo. Action Plan for the Conservation of the Brazilian Merganser (Mergus octosetaceus). Brasília: IBAMA, 2006. v. 3.
ICMBio, 2014. ICMBio. Plano de Ação Nacional para a Conservação do Pato-Mergulhão (Mergus octosetaceus). Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2014. Disponível em: <https://www.gov.br/icmbio/pt-br/assuntos/biodiversidade/pan/pan-pato-mergulhao>. Acesso em: 15 abril 2025.
ICMBio. Plano de Ação Nacional para a Conservação do Pato-Mergulhão (Mergus octosetaceus). Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2020. Disponível em: <https://www.gov.br/icmbio/pt-br/assuntos/biodiversidade/pan/pan-pato-mergulhao/2-ciclo/pan_pato_mergulhao_sumario-1.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2025.
ICMBio. Plano de Ação Nacional para a Conservação do Pato-Mergulhão (Mergus octosetaceus). Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2024. Disponível em: <https://www.gov.br/icmbio/pt-br/assuntos/biodiversidade/pan/pan-pato-mergulhao>. Acesso em: 15 abril 2025.
SICK, H. Ornitologia Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
MMA, 2022. DOU 108, de 08 de junho de 2022, Seção 1, página 74. Disponível em: < https://www.icmbio.gov.br/cepsul/destaques-e-eventos/704-atualizacao-da-lista-oficial-das-especies-ameacadas-de-extincao.html>. Acesso em 16 abril 2025.