QUE DOENÇA É ESSA?

A Peritonite Infecciosa Felina (PIF) é uma doença viral, infecciosa, sistêmica e imunomediada que é progressivamente fatal. Acomete membros da família Felidae, incluindo não só os gatos domésticos como selvagens, seja em cativeiro ou vida livre.

O vírus da PIF se origina da mutação do coronavírus felino no animal (FCoV). A infecção pelo coronavírus é bem alta nas populações domésticas felinas por todo mundo onde pesquisas demonstram que até 40% dos gatos de estimação são soropositivos. Apesar disso, a PIF não é uma doença extremamente comum, geralmente os animais são assintomáticos e apresentam sintomas gastrointestinais leves e isso se deve ao fato da mudança no tropismo do vírus.

Os coronavírus, assim como outros vírus RNA, têm a característica de sofrer mutações frequentes no seu genoma em função dos erros cometidos pela RNA polimerase, sendo a alta frequência de recombinação, um aspecto importante na patogenia dessa doença.

O FCoV pertence à família Coronaviridae, assim como o coronavírus humano, porém, a diferença entre eles se dá no gênero, sendo o coronavírus felino do gênero Alphacoronavirus e o coronavírus humano do gênero Betacoronavirus. Não é uma zoonose, ou seja, os gêneros diferentes não afetam a outra espécie (animal/humano).

CARACTERÍSTICAS EPIDEMIOLÓGICAS

Dentro dos aspectos epidemiológicos, podem ser citados:

– Prevalência do coronavírus felino: o coronavírus felino é comum em populações de gatos em todo o mundo. Se espalha facilmente e a alta prevalência do coronavírus aumenta o risco de ocorrência da PIF.

– Fatores de riscos ambientais e estresse: ambientes superpovoados, com muitos gatos como abrigos, colônias, criadouros, competição por recursos (comida e território) e condições de higiene precárias aumentando a probabilidade de transmissão do coronavírus e consequentemente da PIF. O uso coletivo de fômites e de vasilhas sanitárias e o hábito de lambeduras mútuas favorecem a transmissão.

– Idade e estado imunológico do gato: a PIF é mais comum em gatos jovens, com menos de dois anos de idade. Isso está relacionado com a imaturidade do sistema imunológico, que acaba sendo menos capaz em controlar a replicação do coronavírus. Mas também pode ocorrer em gatos idosos.

– Mutação do coronavírus: uma ativação de resposta imune anormal, que vai depender da ocorrência da mutação no organismo do gato e varia de animal para animal.

Infecções intercorrentes com os vírus da leucemia felina (FeLV) e da imunodeficiência felina (FIV) favorecem o risco de PIF.

PATOGENIA E SINAIS CLÍNICOS

O vírus entérico é encontrado disseminado no ambiente, como nas caixas de areia, água, dentre outros, principalmente por ter como via de eliminação as fezes e, consequentemente, sendo transmitida pela via fecal-oral. Ele fica no ambiente, ocasionando infecções e aumentando a probabilidade de uma mutação por erro na RNA-polimerase no processo de transcrição, gerando a transformação do FCoV entérico para o FCoV da peritonite infecciosa felina que, ao alterar o tropismo por macrófagos e monócitos, gera inflamação e altera a permeabilidade vascular.

Dessa forma, com um desenvolvimento mais rápido ocorre a forma úmida da doença, caracterizada pela ocorrência de efusões em tórax e abdômen principalmente. Entretanto, a doença pode evoluir de forma mais lenta e não gerar efusões, sendo conhecida como forma seca da PIF.

Os sinais clínicos são multissistêmicos e variam de acordo com as estruturas que estão sendo acometidas, incluindo febre alta e persistente, linfadenopatia, alterações gastrointestinais, oftálmicas, neurológicas e cardiorrespiratórias.

DIAGNÓSTICO

O diagnóstico para a Peritonite Infecciosa Felina envolve a junção de diversas pistas diferentes, como: o histórico do paciente, os sinais clínicos e os achados laboratoriais referentes à ele. Em hemograma, são observadas anemia, linfopenia e neutrofilia. Já em avaliação ultrassonográfica, vê-se efusões, linfonodomegalia, alterações hepáticas, renais e intestinais.

O PCR se apresenta como um teste muito sensível, mas menos específico do que o ideal, pois não é capaz de diferenciar entre o vírus que causa enterite branda de sua mutação mais patogênica. Métodos sorológicos também são ineficazes, pois boa parte dos felinos domésticos possuem anticorpos para o FCoV, graças à sua forma entérica pouco patogênica, mas amplamente disseminada.

O diagnóstico confirmatório é feito principalmente por imunohistoquímica. Os materiais necessários para essa análise podem ser obtidos por biópsia.

TRATAMENTOS:

-ANTIVIRAL GS441524

Os primeiros antivirais promissores surgiram em 2016, mas foi a partir de 2017, após surtos de Ebola e SARS-COV, que a substância ativa do remdesivir, GS-441524, ganhou destaque no tratamento da PIF.

O medicamento é um análogo de nucleotídeos e interfere na replicação do RNA viral. A RNA polimerase do vírus pode incorporar o GS-441524 em vez de um nucleotídeo natural durante a replicação. Isso interrompe a formação do RNA viral e impede que o vírus se replique.

Estudos realizados em 2018 por Pedersen et. al mostraram que o GS-441524 é eficaz no tratamento em gatos com PIF induzida. Em 2019, Pedersen et. al, realizou um estudo clínico utilizando uma dosagem de 2,0 mg/kg subcutaneamente para 31 gatos com PIF naturalmente adquirida, por 12 semanas. Dos 31 gatos examinados, 26 terminaram o tratamento, onde 18 ainda estavam em remissão no momento da publicação do estudo. Mas nos primeiros cinco dias de tratamento, quatro gatos morreram ou foram sacrificados, e um morreu no 26° dia. Dos vinte e seis gatos tratados, oito apresentaram recaídas entre três e oito dias após o início do tratamento, sendo dois deles com sinais neurológicos.

Desses oito gatos, três receberam a mesma dose, com um evoluindo para a forma neurológica e sendo eutanasiado; os dois primeiros responderam bem, mas depois recaíram. Esses dois receberam uma dose maior de tratamento e melhoraram. Dos cinco gatos restantes aos quais a dose foi aumentada para 4mg/kg, todos responderam bem e estavam em remissão quando a publicação foi feita. Logo, dos 31 gatos tratados, 26 apresentaram remissão.

No Brasil, o GS-441524 é normalmente administrado via subcutânea. O tratamento normal dura 84 dias e as dosagens variam de 2 mg/kg a 4 mg/kg, ajustadas de acordo com a resposta e o tipo de apresentação da PIF. A aplicação do GS-441524 subcutânea é dolorosa e pode exigir tranquilizantes. A variação dos locais de inoculação é uma ótima maneira de evitar feridas e abscessos. Enquanto a resistência ao tratamento, ela é raramente observada, mas o aumento da dosagem pode ser manejado caso se apresente.

No âmbito ético e regulamentar há grande dificuldade de obter licenças para uso veterinário do GS-441524, além do desvio da molécula para medicina humana, assim levando a produção e venda de medicamentos não licenciados, o que aumentou os custos e tornou mais difícil para muitos tutores de gatos obterem o tratamento.

Apesar dos obstáculos regulatórios, o GS-441524 demonstrou ser útil para tratar a PIF. Para reduzir a dor da injeção, tornar o medicamento mais acessível e otimizar dosagens, os futuros estudos devem se concentrar na melhoria de formulações e dosagens. Para que o tratamento seja seguro, eficaz e acessível, é necessária regulamentação adequada.

-MOLNUPIRAVIR

O Molnupiravir é um pró-fármaco antiviral. Foi aprovado em 2021 para o tratamento da COVID-19 no Japão e em 2022 seu uso emergencial foi liberado no Brasil com o mesmo fim. Hoje, o fármaco não é mais comercializado no Brasil, mas não é ilegal importá-lo; entretanto, seu uso ainda está restrito à medicina humana. Ele atua impedindo a replicação do vírus ao se incorporar ao seu genoma.

Os estudos começaram a ser realizados em humanos, mas como há um gênero de importância na medicina veterinária (Alphacoronavirus), que quando mutado gera PIF, uma doença letal se não tratada, começaram a ser realizados na medicina felina também. A princípio, o fármaco foi testado como terapia de resgate do GS-441524, principalmente por recidivas após seu uso, e obteve boa resposta clínica dessa forma.

O valor do Molnupiravir é mais baixo quando comparado ao GS-441524, a duração do seu tratamento é igual e a administração é por via oral, outra vantagem quando comparado ao GS-441524, que possui aplicação subcutânea e dolorosa.

Um estudo publicado em agosto de 2023 no “Journal of Veterinary Internal Medicine” relatou 18 casos de gatos com PIF tratados com Molnupiravir. Treze gatos apresentavam a PIF na forma efusiva, cinco na forma não efusiva, e destes 18, três gatos apresentavam sinais neurológicos. Para participarem do estudo, todos os gatos possuíam sinais clínicos da doença e os que apresentavam a forma efusiva tinham PCR positivo da efusão. O tratamento utilizado para os três casos era administrado por via oral, duas vezes ao dia, por 84 dias. Os que apresentavam a forma efusiva, a dose era de 10 mg/kg; PIF não efusiva: 15 mg/kg e os que apresentaram sinais neurológicos e oculares, 20 mg/kg.

Esse estudo obteve boa resposta clínica em 14 gatos que obtiveram remissão até o momento de publicação do estudo (55 a 107 dias); os que apresentavam lesões piogranulomatosas, tiveram a redução ou se tornaram indetectáveis na ultrassonografia, e os valores laboratoriais normalizaram. Três gatos morreram e um foi eutanasiado. Os quatro possuíam a forma efusiva da PIF, entretanto, alguns gatos sobreviventes possuíam sinais clínicos mais graves, portanto não foram encontrados sinais produtivos da causa da morte desses animais. Não foram realizados exames post mortem, então não se sabe ao certo o que causou a morte desses animais.

Com esse estudo, podemos concluir que o N amostral de casos é ainda muito baixo, mas houve bons resultados no geral com ele. São publicados alguns casos relatando a eficácia, mas ainda faltam dados e publicações oficiais para o uso assertivo do Molnupiravir na PIF.

CONCLUSÃO

Em síntese, o GS-441524, derivado do remdesivir, demonstrou eficácia significativa no tratamento da Peritonite Infecciosa Felina (PIF), com estudos mostrando altas taxas de remissão em gatos tratados. No entanto, a administração subcutânea é dolorosa e apresenta desafios. A regulamentação adequada é essencial para facilitar o acesso seguro e eficaz ao tratamento, e futuros estudos devem focar em melhorar formulações e dosagens para tornar o tratamento mais acessível e menos doloroso.

Quanto ao uso do Molnupiravir no tratamento da PIF, ele possui custo-benefício potencial, entretanto ainda falta aprovação oficial e mais pesquisas são necessárias para garantir a eficácia e segurança do medicamento no tratamento dessa doença.

REFERÊNCIAS:

Amirian, E. S., & Levy, J. K. (2020). Current knowledge about the antivirals remdesivir (GS-5734) and GS-441524 as therapeutic options for coronaviruses. One Health, 9, 100128. doi:10.1016/j.onehlt.2020.100128

Coggins, Sally J et al. “Outcomes of treatment of cats with feline infectious peritonitis using parenterally administered remdesivir, with or without transition to orally administered GS-441524.” Journal of veterinary internal medicine vol. 37,5 (2023): 1772-1783. doi:10.1111/jvim.16803

CRUZ, C.A. et al. Aspectos epidemiológicos da peritonite infecciosa felina. PUBVET, Londrina, V. 7, N. 14, Ed. 237, Art. 1567, Julho, 2013.

Meagan Roy, Nicole Jacque, Wendy Novicoff, Emma Li, Rosa Negash,1 and Samantha J. M. Evans. Unlicensed Molnupiravir is an Effective Rescue Treatment Following Failure of Unlicensed GS-441524-like Therapy for Cats with Suspected Feline Infectious Peritonitis. Pathogens. 2022. doi: 10.3390/pathogens11101209

Pedersen NC, Perron M, Bannasch M, et al. Efficacy and safety of the nucleoside analog GS-441524 for treatment of cats with naturally occurring feline infectious peritonitis. Journal of Feline Medicine and Surgery. 2019;21(4):271-281. doi:10.1177/1098612X19825701

Sase, Okihiro. “Molnupiravir treatment of 18 cats with feline infectious peritonitis: A case series.” Journal of veterinary internal medicine vol. 37,5 (2023): 1876-1880. doi:10.1111/jvim.16832

Thayer, V., Gogolski, S., Felten, S., Hartmann, K., Kennedy, M., & Olah, G. A. (2022). 2022 AAFP/EveryCat feline infectious peritonitis diagnosis Guidelines. Journal     of         Feline  Medicine            and      Surgery,          24(9),   905–933. https://doi.org/10.1177/1098612X221118761

Sase, Okihiro. “Molnupiravir treatment of 18 cats with feline infectious peritonitis: A case series.” Journal of veterinary internal medicine vol. 37,5 (2023): 1876-1880. doi:10.1111/jvim.16832

Thayer, V., Gogolski, S., Felten, S., Hartmann, K., Kennedy, M., & Olah, G. A. (2022). 2022 AAFP/EveryCat feline infectious peritonitis diagnosis Guidelines. Journal      of         Feline            Medicine        and      Surgery,         24(9),  905–933. https://doi.org/10.1177/1098612X221118761

 

Autores: Ingrid de Oliveira Glauser, Júlia Chagas da Cunha, Larissa Mello Ribeiro, Laura de Sousa Lima e Rodrigo Câmara Araújo – Discentes do Curso de Medicina Veterinária da UFRRJ.
Sob a supervisão de Prof. Clayton B. Gitti – Docente do Curso de Medicina Veterinária da UFRRJ.