Por Sávio Freire Bruno* e Daphnne Chelles Marins**
Introdução
As tartarugas marinhas que habitam os mares brasileiros podem ser consideradas verdadeiros “fósseis vivos”. Descendentes de répteis da Era Jurássica, que ocorreu entre 201 e 145 milhões de anos atrás, essas tartarugas representam a mais antiga linhagem dos répteis viventes.
Pesquisas realizadas na Bacia do Araripe, no interior do Ceará (Oliveira et al, 2011), trouxeram contribuições significativas para o estudo desses animais. Entre as descobertas, destaca-se o fóssil de Santanachelys gaffneyi, descrito por Hirayama (1998) e datado de cerca de 110 milhões de anos, no Cretáceo Inferior. Este exemplar, proveniente da Formação Santana, localizada no leste do Brasil, é a única espécie conhecida do gênero e a tartaruga marinha mais antiga já registrada.
Além disso, as evidências sugerem que as tartarugas marinhas atuais mantiveram, ao longo do tempo, uma morfologia bastante semelhante à de seus ancestrais. Com relação ao tamanho, o maior fóssil desses seres marinhos mede 4,6 m de carapaça, um exemplar oriundo do Cretáceo, pesando entre 1,5 e 2 toneladas, da espécie extinta, o Arquelônio (Archelon ischyros), que viveu entre 75 e 65 milhões de anos atrás.
Características gerais dos quelônios marinhos
As tartarugas marinhas são répteis que pertencem à Ordem dos quelônios, caracterizados por possuírem um casco rígido que protege seus órgãos internos denominado de carapaça. Além disso, as tartarugas marinhas possuem excelente visão e audição e excepcional capacidade de orientação. São capazes de realizar migrações entre as áreas de alimentação, repouso e reprodução, havendo fortes evidências de que as fêmeas adultas retornem exatamente à praia em que nasceram para fazer a ovipostura. Muitos autores sugerem que os filhotes memorizam a composição química da água e o campo magnético da Terra.
Século após século, milênio após milênio, as tartarugas marinhas habitam os mais diversos oceanos do mundo, sendo o Brasil uma importantíssima área para a sobrevivência e reprodução desses animais. Habitam especialmente o alto-mar, mas também a costa, subindo à superfície para respirar e vindo à areia somente para a desova.
Diversidade de espécies que aportam na costa brasileira
Das sete espécies de tartarugas marinhas hoje existentes, cinco aportam em nosso território, a saber:
- A tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), apresentando cinco pares de placas laterais e dois pares de placas pré-frontais, além de uma carapaça marrom-amarelada e o plastrão (ventre) amarelo-claro.
- A tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata), com quatro pares de placas laterais, carapaça marrom, com placas imbricadas e plastrão amarelo-claro, sua face apresenta um bico que lembra a forma do bico de um gavião (Figuras 1 e 2).
Figuras 1 e 2. Tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata), com quatro pares de placas laterais na carapaça, e um bico que lembra o formato do bico de um gavião. Fotos: Sávio Bruno, Linhares, ES, dez. 2012.
- A tartaruga-oliva (Lepidochelis olivacea), com cinco a nove pares de placas laterais, sutilmente estreitas, e coloração verde-escura, enquanto o plastrão é amarelo-claro. Já a cabeça possui dois pares de placas pré-frontais (Figura 3).
- A tartaruga-verde (Chelonia mydas), com quatro pares de placas laterais e um único par de placas pré-frontais. Adultos com o dorso verde-acinzentado e plastrão esbranquiçado. É a mais comumente encontrada nas cidades do Rio de Janeiro e Niterói, e a de maior ocorrência na costa brasileira (Figura 4).
- A tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), também conhecida como tartaruga-gigante, tem corpo avantajado e ausência de placas na carapaça, que estão presentes somente na forma juvenil. Sua coloração é negra, com manchas brancas, azuladas e rosadas. Dessas cinco espécies, a tartaruga-de-couro é a única que não pertence à família Cheloniidae, sendo essa gigante representante da família Dermochelydae.
Características reprodutivas
A maturidade sexual desses admiráveis répteis pode variar de 10 a 50 anos, dependendo da espécie, como o caso da tartaruga-verde, que, devido à herbivoria, tem seu desenvolvimento mais lento, e, em regra, sendo capaz de reproduzir-se dos 25 aos 50 anos. O acasalamento ocorre dentro da água e os ninhos são escavados na praia, preferencialmente à noite.
Na costa brasileira, a temporada de desovas, via de regra, ocorre de setembro a abril, e de dezembro a junho nas ilhas oceânicas. Uma mesma fêmea pode copular com vários machos e pode, também, fazer mais de uma desova em uma mesma temporada. Entretanto, a reprodução de uma mesma fêmea em anos consecutivos não é o mais comum, sendo os ciclos reprodutivos classificados em anuais, bienais, trienais ou mesmo irregulares.
Após a desova, as fêmeas retornam ao mar deixando enterrados ovos de casca mole e flexível. A umidade, a concentração de gases e a temperatura afetam o desenvolvimento dos embriões, sendo que durante a incubação a temperatura é que define o sexo dos filhotes. Quando a temperatura está mais alta favorece o nascimento de fêmeas. A fêmea pode fazer a ovipostura solitariamente ou de forma sincronizada com outras fêmeas da mesma espécie.
Após um período de incubação variável, em torno de 55 dias, os filhotes escavam a areia acima de si e, ao alcançarem a superfície, movem-se em direção ao mar (Figura 5) e, se for à noite, sua maior referência será o reflexo da lua no espelho do mar. Como se isso tudo já não fosse um enorme desafio, começa uma nova luta pela sobrevivência.
Principais ameaças
As ameaças às tartarugas marinhas podem ser naturais ou provocadas pela ação humana. Entre as ameaças naturais enumeram-se a erosão e a inundação pela maré, que destrói os ninhos; o aumento da temperatura global, que pode produzir um desequilíbrio na proporção entre machos e fêmeas e a predação, sendo os filhotes recém-eclodidos mais vulneráveis, desde o momento que abandonam o ninho. As ameaças por ação humana incluem a predação; a ocupação irregular do litoral que estreita a faixa de areia e torna os ninhos mais vulneráveis à maré e a iluminação artificial, que desorienta os filhotes em sua caminhada em direção ao mar.
Enumera-se ainda, o trânsito de veículos nas areias e, particularmente, a poluição marinha causada pelo lixo, petróleo, produtos químicos e esgoto. A ingestão de corpos estranhos é muito frequente, pois os animais confundem, por exemplo, plásticos com algas marinhas. Somam-se doenças, como a fibropapilomatose, uma enfermidade que atinge grande número de tartarugas marinhas em todo o mundo – especialmente a tartaruga-verde – e é caracterizada por múltiplas tumorações na pele, que podem reduzir a visão ou comprometer a locomoção (Figuras 6 e 7).
Figuras 6 e 7. A fibropapilomatose é uma enfermidade viral que acomete tartarugas marinhas, com predominância para a tartaruga-verde (Chelonia mydas), podendo inclusive, acometer a região periocular e comprometendo a acuidade visual dos indivíduos acometidos, mas também a sua capacidade de natação, devido aos múltiplos tumores que proliferam na pele, ao redor dos membros e também ao redor da cabeça. Fotos: Sávio Bruno.
Quanto ao abate, em certas regiões do mundo, a coleta de ovos para o consumo humano ainda persiste. Hélices de barcos e navios lesionam, perfuram e matam as tartarugas além disso, a intensificação e modernização da atividade pesqueira não só tem pressionado os ecossistemas marinhos, como também elevado as altas taxas já existentes de capturas incidentais, sendo considerada a maior ameaça para tartarugas juvenis e adultas.
Redes de emalhe, espinhéis (long-line) e redes de arrasto são os métodos de pesca que mais ameaçam a sobrevivência das tartarugas marinhas no Brasil. Anzóis e redes, além de causarem lesões, podem levar esses animais à morte por não permitirem que venham à superfície para respirar.
De acordo com a atual Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção no Brasil (ICMBIO, 2022), à exceção da tartaruga-verde (Chelonia mydas), todas as demais espécies que aportam no Brasil estão categorizadas em algum grau de ameaça. Neste contexto, a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea) está caracterizada no maior grau, sendo considerada “criticamente em perigo” (CR), enquanto a tartarurga-de-pente (Eretmochelys imbricata), encontra-se “em perigo” (EN) e a tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea) e a tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), são consideradas ameaçadas de extinção no grau “vulnerável” (VU).
Muitos são os desafios para o século XXI, mas, certamente, não será com o incremento da poluição marinha em todos os níveis, incluindo novos emissários submarinos e outras atividades voltadas ao progresso a qualquer preço, sob o discurso da “sustentabilidade”, que afirmaremos nosso compromisso com a manutenção da diversidade biológica no planeta. De um lado, esses maravilhosos seres, entre inúmeros que habitam o mar, procuram sobreviver a tantas intervenções; de outro, nos cabe a responsabilidade e o real compromisso de uma geração.
Referências bibliográficas:
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