Alimentos artificiais: potencial alternativa para a crescente demanda populacional?

Resumo: A população mundial, segundo dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU), deve crescer rapidamente nos próximos anos, atingindo a marca de 9,7 bilhões de pessoas em 2050. Internamente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que a população brasileira alcance 233,2 milhões de pessoas no ano de 2047. Por conseguinte, há uma preocupação genuína sobre a adequada oferta de alimentos para todos de forma igualitária e saudável no horizonte, uma vez que não é homogêneo o acesso à tecnologia, água e terras férteis. Ademais, questões políticas, estratégicas e ambientais adicionam uma fonte extra de incertezas nesse cenário conturbado. Precocemente, Thomas Robert Malthus, demógrafo e economista britânico, analisou o desequilíbrio entre a produção de alimentos e o crescimento demográfico, registrando o alerta em suas obras e inspirando outros estudiosos. A agricultura familiar desempenha um papel importante no abastecimento de alimentos, assim como o uso de organismos geneticamente modificados e transgênicos. No entanto, a segurança alimentar ainda vai depender também de outras fontes como, por exemplo, dos alimentos artificiais, também conhecidos como sintéticos. Cabe ressaltar que esses são frutos de métodos não tradicionais de produção, impulsionados pelos avanços tecnológicos das últimas décadas nas áreas de biotecnologia, bioquímica e físico-química. Os alimentos artificiais podem ser divididos em sintéticos celulares (constituídos literalmente por células) e sintéticos acelulares (produtos de interesse oriundos de culturas celulares). Essa alternativa, embora promissora, apresenta alguns obstáculos, principalmente relacionados a questões econômicas, regulatórias e de aceitação do público. Como ainda se encontra em fase embrionária, os custos de produção são elevados e aumentar a escala torna-se um grande desafio. Uma estratégia relevante para aumentar a viabilidade e atingir uma economia de escala é difundir o conceito e aumentar a aceitação do público por meio de estratégias sensoriais e de exposição aos consumidores.

Horizonte incerto

O relatório “Perspectivas Mundiais de População: 2019” da Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que a população mundial deve crescer em 2 bilhões de pessoas nos próximos 30 anos, passando dos atuais 7,7 bilhões de indivíduos para 9,7 bilhões em 2050. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por sua vez, comunicou na “Projeção da População 2018” que a população do Brasil deverá ampliar até 2047, quando chegará a 233,2 milhões de pessoas. Esses números sugerem que é urgente a tomada de atitudes por parte da comunidade nacional e internacional a respeito de questões climáticas, habitacionais e, principalmente, alimentares.

Espera-se que, para suprir as necessidades básicas de alimentação de todos, a disponibilidade de alimentos acompanhe o ritmo da ampliação demográfica projetada. A América Latina e o Caribe possuem destaque na produção agrícola e pecuária no cenário atual, sendo a soja, milho, carnes, açúcar e café os principais produtos da região. Na Figura 1 é possível constatar que a produção de cereais acompanhou, no Brasil e no mundo, a tendência de alta demográfica, principalmente devido à aplicação de novas tecnologias no campo. Em relação ao rebanho bovino, os números brasileiros destoam dos internacionais, uma vez que estes mantiveram-se praticamente estáveis, enquanto que aqueles expandiram-se.

Entretanto, as perspectivas para o futuro não são promissoras mundo afora, uma vez que as desigualdades econômicas e regionais no acesso à tecnologia, água e terra produtiva são um obstáculo à fome zero, um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Tais desigualdades não se restringem exclusivamente a grandes massas de terra como continentes, mas também podem ser observadas dentro de um mesmo país ou distrito. Além disso, questões políticas, estratégicas e ambientais atuam influenciando a segurança alimentar mundial e conferem uma parcela adicional de incerteza nesse cenário conturbado.

Thomas Robert Malthus (1776 – 1834), economista e demógrafo britânico, foi uma autoridade no tema, pois analisava de forma premeditada o desequilíbrio entre oferta e demanda de alimentos em suas obras como em “Ensaio sobre o Princípio da População”. A Teoria Malthusiana discorre que a capacidade de crescimento da população é indefinidamente superior à capacidade da terra de produzir os meios de subsistência básicos necessários. Em linguagem matemática, pode-se dizer que a produção de alimentos cresce segundo uma progressão aritmética, enquanto que a população mundial aumenta em progressão geométrica. Embora criticada por alguns intelectuais modernos, as percepções de Malthus foram reanimadas e reestruturadas diversas vezes e podem sintetizar, de certo modo, o cenário que se configura no horizonte.

Qualidade nutricional

Além da oferta compatível, uma outra preocupação universal diz respeito à qualidade do que é ingerido em termos nutricionais. Os nutrientes são essenciais para a manutenção do metabolismo do organismo e incluem carboidratos, lipídios, proteínas, vitaminas e sais minerais. A ingestão em excesso ou inferior às necessidades individuais acarretam em graves consequências ao corpo humano. Evidência disso é que o sobrepeso e a obesidade são uma realidade para mais de 2 bilhões de indivíduos. Por outro lado, a subnutrição atinge um número superior a 800 milhões de pessoas e com tendência de alta, principalmente na América Latina e Caribe que, embora grandes produtores de alimentos, apresentam índices preocupantes de má nutrição.

Por isso, a fim de ampliar o acesso à informação sobre uma alimentação completa e equilibrada, o Ministério da Saúde publicou a segunda edição do “Guia Alimentar para a População Brasileira”. O documento reúne informações e recomendações para uma alimentação saudável, considerando dimensões sociais e regionais que são fatores relevantes em um país de proporções continentais e com um povo plural. Uma das orientações de destaque, chamada de “regra de ouro”, é o consumo de alimentos in naturaou minimamente processados que contêm diversos nutrientes fundamentais para o adequado funcionamento do corpo humano.

Segurança alimentar

Do mesmo modo, para abastecer com qualidade os mais de 9 bilhões de indivíduos em poucas décadas, algumas estratégias devem ser aprimoradas e difundidas de forma homogênea entre os territórios. A agricultura familiar, por exemplo, tem um papel expoente por ser capaz de aproximar os pequenos agricultores e pecuaristas dos centros de consumo regionais, reduzindo a perda por deterioração durante o transporte. O desenvolvimento de organismos geneticamente modificados e transgênicos, por sua vez, contribui para melhor adaptação de determinadas espécies a áreas antes impraticáveis para seu manejo e/ou aumento da produtividade sem acréscimo de área útil. Entretanto, apenas isso não será suficiente e outras técnicas ainda precisão ser associadas para garantir a segurança alimentar, sendo a produção de alimentos artificiais uma potencial alternativa.

Alimentos artificiais

Os alimentos artificiais são frutos da chamada cellular agriculture, ou seja, agricultura e pecuária celulares. Esse nicho revolucionário da Ciência de Alimentos está empenhado em desenvolver alimentos com base em métodos não tradicionais, impulsionados pelos recentes avanços tecnológicos nas áreas de biotecnologia, bioquímica e físico-química. A Engenharia de Tecidos, de maneira similar, compartilha conhecimentos e busca desenvolver órgãos artificiais compatíveis com o corpo humano que possam ser estudados ou transplantados, salvando vidas.

O uso de células tronco musculares, organismos geneticamente modificados e transgênicos são fontes não tradicionais de produção de alimentos e atores da nova fronteira em expansão. Antes, o que era imaginável apenas em filmes de ficção, começa a ficar palpável e mostra-se como uma alternativa para o acesso a fontes simples e até completas em termos nutricionais, uma vez que é possível moldar o produto conforme as necessidades individuais.

Os alimentos artificiais podem ser divididos em dois grupos particulares: produtos sintéticos celulares e produtos sintéticos acelulares (HOOGENKAMP, 2016). O primeiro grupo diz respeito a alimentos constituídos literalmente por células como, por exemplo, carne bovina in vitro. O segundo termo engloba produtos de interesse oriundos de culturas celulares como é o caso de ácidos graxos produzidos por leveduras. Os ácidos graxos como o Ômega 3 são fundamentais na dieta humana e desempenham papel crucial na redução dos fatores de risco cardiovascular, incluindo os níveis plasmáticos de colesterol e pressão arterial (VIEIRA et al., 2018).

Fatos concretos

Nos últimos anos, houve um incremento significativo dos experimentos científicos para viabilizar a produção de comestíveis artificiais. A Figura 2 reflete essa tendência, evidenciado pelo expressivo número de documentos relacionados ao tema publicados no período de 2009 a 2019 em bases de dados como Scopus (Elsevier) e PubMed. Os termos “artificial food” (alimento artificial), “cellular agriculture” (agricultura e pecuária celulares) e “in vitro meat” (carne in vitro) são chave para a busca de dados, uma vez que partem do geral ao específico e permitem ter uma visão ampla do espectro de pesquisas e avanços nessa área de conhecimento.

Delimitando a busca, é possível encontrar noventa documentos listados nos últimos dez anos na base de dados Scopus (Elsevier) quando o termo “in vitro meat” (carne in vitro) é pesquisado, sendo que a grande maioria está listada na área de Agricultura e Ciências Biológicas (Figura 3). No processo de produção desse alimento, células-tronco, geralmente musculares, de animais adultos são cultivadas em um meio rico em nutrientes para permitir seu crescimento e especialização em tecido muscular, gerando um produto similar ao original.  Outros tipos de carne como a suína, de aves e de pescado também são promissoras e passam por testes para chegar ao mesmo objetivo final.

Em 2013, uma equipe de pesquisadores da Universidade de Maastricht apresentou em Londres o primeiro hambúrguer bovino artificial. O custo de produção de algumas centenas de gramas revelado à época foi considerável, ultrapassando milhares de dólares e levantando a discussão sobre sua viabilidade, seja em pequena ou grande escala. A Mosa Meat, empresa fruto dessa pesquisa, no entanto, acredita na sustentabilidade da área e almeja sintetizar carne moída em laboratório de forma que possua sabor mais próximo possível da carne real e a um custo igual ao da carne moída comercializada hoje.

Escala industrial

A ampliação para escala industrial depara-se com alguns desafios além do elevado custo de produção, como por exemplo, a falta de regulação do setor e diretrizes pelos principais agentes internacionais. Essa questão começou a ser tratada com mais afinco em 2018 pela U.S. Food and Drug Administration (FDA)e The United States Department of Agriculture (USDA)com a abertura de uma consulta pública nos Estados Unidos para discutir o tema com a sociedade a fim de proporcionar segurança para os investidores, produtores e consumidores.

Ademais, mimetizar as condições in vivoindustrialmente para o crescimento celular não é simples e ainda há lacunas que precisam ser preenchidas. Em primeiro lugar, a escolha da fonte celular adequada é crucial, uma vez que é desejável ter rápido crescimento e elevado rendimento com o menor custo possível. Outro ponto importante, principalmente para alimentos sintéticos celulares, é a necessidade de uma matriz que permita o crescimento em três dimensões de forma sustentável, uma vez que é a irrigação das células com nutrientes deve ocorrer homogeneamente.

Aceitação do produto

A aceitação do público consumidor é outro ponto importante que precisa ser trabalhado para, aumentando o mercado e escala, reduzir custos. Atualmente, a busca por uma experiência sensorial próxima ou idêntica aos produtos convencionais é uma das principais ambições dos pesquisadores e isso envolve sabor, odor e textura que irão atrair os consumidores para um novo hábito de consumo.

Além disso, é importante considerar que os consumidores estão cada vez mais exigentes e preocupados com práticas sustentáveis de produção. Consumidores modernos levam em consideração não apenas qualidade, preço e sabor, mas também consideram aspectos éticos, como questões de bem-estar animal e possíveis impactos ao meio ambiente (SIMOES et al., 2015). A adesão a esses fatores multidimensionais, além de uma estratégia de marketing, é uma solução para os desafios que as indústrias começam a enfrentar no mundo mais globalizado e competitivo.

Por outro lado, a aceitação de um produto também passa pela exposição do indivíduo ao produto. Naturalmente, o psicológico humano e suas expectativas influenciam na decisão de consumir um novo produto ou não. Uma forma de familiarizar o consumidor e reduzir o aspecto psicológico repulsor é a exposição repetida ao produto de interesse. Entretanto, o aumento da aceitação pode não ser proporcional ao aumento da familiarização (COSTA et al., 2014).

Futuro

Frente ao forte aumento populacional mundial nas próximas décadas fica inviável pensar, portanto, que a alimentação de todos dependerá exclusivamente dos métodos tradicionais de produção. Os alimentos artificiais, nesse contexto, configuram-se como uma alternativa segura que viabilizará elevar a produção com baixos impactos. Em termos ambientais, haverá significativos ganhos que incluem a redução das emissões de dióxido de carbono (CO₂) e metano (CH₄), além da preservação de áreas de vegetação nativa e sua biodiversidade. Socialmente, observa-se uma tendência de mudança de paradigmas que vão ao encontro da produção de alimentos artificiais, pois cada vez mais busca-se uma produção sustentável, saudável e humanizada.

Referências

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