Em 1587, o colono português Gabriel Soares de Souza publicou ‘O Tratado Descritivo do Brasil’, para informar ao Rei de Portugal sobre as riquezas naturais do novo território. Neste primeiro levantamento da fauna e flora da extensa costa brasileira, exclusivamente baseado no conhecimento e no sistema de identificação dos povos ameríndios, foram descritas cerca de 300 espécies de mamíferos, aves, peixes, répteis, anfíbios e invertebrados.

Em 2018, o Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (ICMBio), comunicou a existência de 8.922 espécies e sub-espécies de animais vertebrados no Brasil, sendo 732 mamíferos, 1.979 aves, 732 répteis, 973 anfíbios e 4.506 peixes, sem considerar os invertebrados. Esses númeroscrescem com o passar dos anos, confirmando o valor do nosso patrimônio natural.

Os 431 anos entre essas duas publicações integram uma densa história sobre as interações entre animais humanos e não-humanos e trajetórias que envolvem saberes, valores e práticas sistematicamente ignoradas pela narrativa histórica convencional. Uma das obras inaugurais desse campo de pesquisa, ‘O homem e o mundo natural’, do historiados inglês Keith Thomas, publicada em 1983, oferece uma perspectiva histórica inovadora a respeito da emergência de valores motivados pelo respeito à natureza e às outras criaturas, a partir do século 16, na Inglaterra.

Desenvolvimentos mais recentes nos estudos inter-espécies demarcam um extenso corpo de conhecimento internacional pautado por abordagens interdisciplinares sobre as interações dinâmicas entre sociedades e naturezas. Ao reconhecerem os diversos atores (humanos e não-humanos) como produtores de memória, e não como objetos, elementos da paisagem ou simples observadores, esses estudos não   buscam respostas naturalizadas, e trafegam além das fronteiras erguidas entre as ciências da natureza e as humanidades.

Ainda que o discurso histórico hegemônico tenha ignorado sistematicamente as perspectivas não eurocêntricas, assim como  pontos de vista dos povos ameríndios, dos escravos africanos e das mulheres, o exame dessas mesmas narrativas nos revela a participação fundamental dos animais nativos no processo de formação da sociedade brasileira. Já no século 16, remessas de espécies nativas para a Europa eram sistemáticas. Macacos, araras, papagaios, cotias, periquitos, urubus, veados, cães do mato, ‘gatos diversos’, onças, preás, saguis, cobras e lagartos eram negociados por colecionadores, e se tornaram um negócio ainda mais frequente a partir da abertura dos portos, em 1808. Beija-flores eram comercializados para a confecção de ornamentos para chapéus e vestidos usados nos salões europeus. Suas penas ou o próprio animal empalhado eram pequenas ‘jóias’ muito apreciadas por turistas que visitavam a capital, no século 19.

Saber identificar os animais de carne saborosa e os peçonhentos foi essencial para a sobrevivência do europeu no novo território. O médico holandês, Guilherme Piso, considerava que filhotes de papagaios assados, fritos ou cozidos, não eram menos estimados que as pombas na Europa. O Padre José de Anchieta comparou o sabor das larvas de insetos assadas e torradas à banha de porco. Até o século 19, formigas eram consideradas um alimento saudável e saboroso, vendido nas quitandas de São Paulo junto a biscoitos de polvilho e pés-de-moleque.

Para garantir sua própria sobrevivência, colonos e missionários observavam como determinados animais faziam uso de determinadas plantas, esfregando suas feridas nos troncos dessa árvore com poder cicatrizante. Na medicina colonial, algumas espécies, como o jabuti e o gambá, possuíam virtudes terapêuticas admiráveis para inúmeras doenças, assim como determinadas partes dos corpos de diversos outros animais nativos. O abate de baleias na costa brasileira representou um lucrativo monopólio português, entre 1614 e 1801.

Ainda assim, a fauna silvestre era considerada inferior aos animais domésticos europeus e, segundo a lógica colonial, que prevaleceu no Brasil até meados do século passado, nociva. Nesse contexto, nenhum sistema de proteção a essas espécies existiu no Brasil, até a aprovação da Lei de Proteção à Fauna, em 1967. O Código Civil Brasileiro de 1916, definia os ‘animais bravios enquanto entregues à sua natural liberdade’ como Res Nullius, ou ‘coisa de ninguém’, sem dono, abandonadas e, portanto, sujeitas a apropriação.

O processo de construção dessa memória da fauna brasileira constitui um campo de pesquisa ainda incipiente, entretanto, essencial para melhor dimensionar as especificidades locais, regionais e nacionais, assim como percepções e valores coletivos, no mapeamento dos desafios associados à proteção da biodiversidade brasileira. Essa história, compartilhada por seres humanos e não-humanos, se estrutura a partir de novos alicerces e narrativas onde o pensamento científico – discurso por excelência dos ‘seres da natureza’ -, se articula a campos disciplinares distintos, não ignorando as condições políticas, econômicas, ambientais, culturais e sociais implicadas nessas interações.

Além do papel desempenhado no equilíbrio dos ecossistemas, instrumentos de valoração econômica estimam os valores de mercados para os serviços ecossistêmicos gerados (‘gratuitamente’) por animais nativos. Morcegos, serpentes, abelhas e inúmeros pássaros, para citar apenas alguns, que atuam no controle de pragas e mosquitos, na polinização de diversas espécies vegetais e na recuperação de áreas degradadas, são agentes que compartilham ambientes em contínua transformação com as sociedades humanas. Na medida em que a construção da memória é parte do processo de  reconhecimento, o acesso a essa história busca corrigir uma imensa lacuna deixada pelas ciências sociais ao mesmo tempo em que consolida um pensamento brasileiro contemporâneo melhor habilitado a lidar com os atuais desafios impostos à política de conservação da biodiversidade.  O reconhecimento e a inclusão legítima desses seres que habitam, circulam e participam de uma história que nunca foi exclusivamente humana, se revelam essenciais para melhor compreendermos a pluralidade das conexões e dos estados transfronteiriços que nos permitem ressignificar nossas escolhas e possibilidades.

Fotografia: Muriqui do Norte, Gustavo Pedro de Paula, autor do livro ‘Parque Estadual dos Três Picos’ (Luminatti ed., 2017).