Por Sávio Freire Bruno e Marianna Nystrom Farah de Miranda

Introdução: 

A urutu (Bothrops alternatus), que também é conhecida popularmente no Brasil como cruzeiro, urutu-cruzeiro, cruzeira, jararaca-de-agosto, jararaca-rabo-de-porco, coatiara, cotiara, boicoatiara e boicotiara, faz parte do gênero das conhecidas serpentes jararacas (Bothrops). Seus nomes populares geralmente estão associados ao desenho de uma cruz formado pelas linhas brancas próximas à linha dos olhos em sua cabeça triangular, que é seguida por um pescoço bem destacado da cabeça e ornamentado, também, por linhas brancas paralelas (Fig. 1).

Fig. 1: Detalhes do padrão de coloração das escamas de uma urutu (Bothrops alternatus). Repare no desenho em forma de cruz na porção anterior da cabeça. Foto: Sávio Freire Bruno, Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, abril de 2017.

Com tamanho médio de 1,2 metros, e podendo alcançar até 2 metros, a B. alternatus apresenta ao longo do seu corpo padrões arredondados em formato de “U” invertido (ou de “gancho” de um telefone do século passado) que podem variar de tamanho e tonalidade (Fig. 2).

Assim como os demais membros da sua família Viperidae, a Bothrops alternatus possui estruturas chamadas fossetas loreais, que podem ser descritas como um orifício situado entre a narina e os olhos, na altura da escama loreal (e por isso o nome), que está associado à percepção de calor, contribuindo assim, para a localização de seres vivos endotérmicos, como pequenas presas (roedores) ou mesmo potenciais predadores. As fossetas loreais atuam, portanto, na termopercepção.

Fig. 2: Urutu (Bothrops alternatus). Notam-se os detalhes dos desenhos formados ao longo de seu corpo, como os padrões em formato de “U” invertido. Foto: Sávio Freire Bruno, Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, abril de 2017.

Distribuição Geográfica e Ambiente Específico:

A urutu distribui-se do sul de Goiás até o Paraguai, podendo ser encontrada tanto em ambientes úmidos como secos.

Com relação à sazonalidade e de acordo com Homano-Hoge (1996), essas serpentes foram registradas com mais frequência no outono e no inverno. Já em sua rotina diária, o horário mais ativo ocorre das 7:00 às 9:00 da manhã, o que pode estar associado à sua termorregulação, aquecendo-se neste período, enquanto evita horários de alta exposição à forte radiação solar.

Quanto ao habitat, a B. alternatus ocorre no solo, principalmente em locais próximos a córregos e rios. Essa preferência pode se dar pela regulação da temperatura corporal das serpentes por meio da água ou por costumes alimentares. (Lema et al., 1983; Faria, 1998)

Ocorrem também em áreas campestres (Fig. 3), em pastagens, além de áreas de culturas de cana, milho e hortaliças, e nas proximidades das sedes de sítios e fazendas, principalmente se há disponibilidade de grãos e restos de alimentos, que favorecem a proliferação de roedores e, consequentemente, atraem serpentes em geral.

Fig. 3: Urutu (Bothrops alternatus) às margens de uma rodovia não pavimentada que corta uma região campestre. Foto: Sávio Freire Bruno, Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, abril de 2017.

Hábitos Alimentares:

Sua dieta é composta principalmente por pequenos mamíferos, especialmente roedores. Entretanto, de acordo com Mesquita (1997), a preferência por estar próxima à água pode indicar a presença de presas aquáticas e/ou semiaquáticas, assim como observado em Bothrops jararaca e Bothrops jararacussu, que incluem anfíbios na sua alimentação. A Bothrops alternatus auxilia no controle populacional de roedores, contribuindo assim para o equilíbrio dinâmico da comunidade biótica local.

Comportamento Reprodutivo:

O ciclo reprodutivo em répteis, no geral, envolve mudanças em sua anatomia e fisiologia que são influenciadas por fatores internos (atividade metabólica) ou externos, como variações de temperatura, umidade e disponibilidade de alimento (Moll, 1979; Fitch, 1982).

Os ovários de répteis exibem mudanças sazonais, atingindo maior tamanho na estação de reprodução, quando os folículos estão aumentados, preparando-se para a ovulação, para, depois, retornar ao seu tamanho original. (Mulaik, 1946; Varma, 1970; Presst, 1971; Goldberg, 1975). Nas fêmeas de urutu, as principais mudanças morfológicas ocorrem nos ovários e ovidutos. O período de atividade reprodutiva dessa espécie é iniciado no outono e se estende até o inverno (Achaval; Olmos, 1997).

Principais Ameaças:

Evolutivamente, as urutus possuem potenciais predadores naturais, entre os quais podemos enumerar os marsupiais – como o gambá – e outros mamíferos, como canídeos e felinos, além de rapinantes. Tais relações entre espécies fazem parte do equilíbrio dinâmico dos ecossistemas.

Entretanto, as ameaças antrópicas são cada vez maiores. A perda de habitat, a exemplo do desmatamento, a monoatividade extensiva praticada pelo avanço de modelos agrícolas e pecuários, especialmente com o uso de grandes maquinários, o atropelamento de fauna, os incêndios florestais cada vez mais frequentes, além do abate indiscriminado e ilegal, pela insensatez humana, são algumas das principais ameaças à espécie.

Apesar dos graves danos que o veneno da B. alternatus pode causar, os acidentes só costumam ocorrer em situações nas quais a serpente se sente ameaçada. Mesmo assim, o extermínio de urutus ocorre até mesmo em casos onde eventualmente não há riscos, por conta do medo excessivo alimentado por seus mitos, podendo este ser considerado um dos cenários de maior ameaça para a espécie.

Não devemos esquecer que os potenciais reflexos das mudanças climáticas ameaçam a diversidade de todo o planeta.

Considerações Finais de Interesse Médico:

No meio rural, a fama da urutu é de violenta e fatal. Corre a lenda de que “se seu veneno não mata, paralisa”. A urutu possui um veneno com ação coagulante, necrosante e hemorrágica. A ação coagulante deve-se ao seu poder de ativar os fatores de coagulação, converter a protrombina em trombina e transformar o fibrinogênio em fibrina (Denson et al., 1972). A capacidade necrosante resulta da ação citotóxica de suas frações proteolíticas nos tecidos (Gutiérrez; Lomonte, 1989). Já sua ação hemorrágica decorre da presença de hemorraginas, que provocam lesões na membrana basal dos capilares (Mandelbaum; Assakura, 1988).

Em caso de acidentes, medidas de socorro devem ser as mais imediatas possíveis, sendo imprescindível a soroterapia em ambientes hospitalares que normalmente podem ser encontrados na Lista dos Polos de Soro para atendimento de acidentes ofídicos no Brasil (SINITOX, 2018), ou mesmo acessando os hospitais de referência para atendimento de acidentes por animais peçonhentos pelo Ministério do Meio Ambiente, por meio de sua plataforma digital (www.gov.br).

Referências bibliográficas:

Mesquita, D. O.; Brites, V. L. C. Aspectos taxonômicos e ecológicos de uma população de Bothrops alternatus Duméril, Bibron & Duméril, 1854 (Serpentes, Viperidae) das regiões do Triângulo e Alto Paranaíba, Minas Gerais. Biologia Geral e Experimental. Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, v. 3, n. 2, p. 33-38, 26 mar. 2003.

Nunes, S. F. Dieta e biologia reprodutiva da Cruzeira, Bothrops alternatus (Serpentes – Viperidae), na região sul do Brasil. Dissertação (Mestrado em Ciências Biológicas, Biodiversidade Animal, Área de Concentração Bioecologia de Répteis) – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Rio Grande do Sul. Orientadora: Profa. Dra. Sonia Zanini Cechin.

PARPINELLI, A. C. et al. Estudio morfológico e histoquímico de las glándulas cefálicas de Bothrops alternatus (Ophidia, Viperidae). Morphological and histochemical study of the cephalic glands of Bothrops alternatus (Ophidia, Viperidae). Departamento de Morfología, Estomatología y Fisiología, Facultad de Odontología de Ribeirão Preto, Universidad de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil.

DOZORETZ, D. et al. Variaciones de caracteres morfológicos dentro de la especie Bothrops alternatus. Morphological characters variations within the Bothrops alternatus species. Primera Cátedra de Toxicología, Facultad de Medicina, U.B.A. Domicilio: Paraguay 2155, Piso 8vo. Código Postal: C1121A6B CABA. Teléfono 11 5950-9500.

JANEIRO-CINQUINI, T. R. F. Variação anual do sistema reprodutor de fêmeas de Bothrops jararaca (Serpentes, Viperidae). Annual variation of the reproductive system in females of Bothrops jararaca (Serpentes, Viperidae). Laboratório de Herpetologia, Instituto Butantan, Av. Vital Brasil, 1500, 05503-900, São Paulo, Brasil.

[EDUCADORES.DIAADIA.PR.GOV.BR]. Biometria: teoria e prática. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/Biologia/monografia/biometria.pdf. Acesso em: 10 de maio de 2024.

Butantan. Perguntas e respostas sobre o mundo das serpentes: desvende seis mitos sobre as cobras. Disponível em: https://butantan.gov.br/bubutantan/perguntas-e-respostas-sobre-o-mundo-das-serpentes-desvende-seis-mitos-sobre-as-cobras. Publicado em: 04 mar. 2022. Acesso em: 19 jun. 2024.

 

Sávio Freire Bruno é Professor Titular do Departamento de Patologia e Clínica Veterinária, Faculdade de Veterinária, Universidade Federal Fluminense; Colaborador do Curso de Ciências Biológicas e do Curso de Ciência Ambiental (UFF). Professor do Programa de Pós-graduação em Engenharia de Biossistemas (UFF).
Marianna Nystrom Farah de Miranda é Acadêmica do Curso de Ciências Biológicas, Universidade Federal Fluminense.
Revisão de texto: Eduardo Sánchez.
Foto de capa: Urutu (Bothrops alternatus). Por Sávio Freire Bruno. Parque Nacional da Serra da Canastra, MG, 24 de abril de 2017.