Introdução

O objetivo desta revisão de literatura, realizada por discentes do curso de medicina veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), foi reunir informações atualizadas sobre a parvovirose canina, buscando pôr em pauta o uso inovador de imunomoduladores no tratamento de doenças virais e especificamente, a parvovirose. O trabalho apresenta estudos e experimentos feitos a partir do uso de dois imunomoduladores principais: o Interferon-ômega e o Transferon. Dessa forma, foram obtidos resultados positivos e promissores, contribuindo ainda mais para as bases de dados da medicina veterinária no Brasil.

A doença

A parvovirose canina é uma doença infectocontagiosa causada pelo parvovírus canino tipo 2 (CPV-2), que é considerado um importante vírus causador de gastroenterite hemorrágica viral em cães. Muitas das vezes a doença é caracterizada por sinais clínicos de prostração, anorexia, vômitos, diarreia (predominantemente hemorrágica), dor abdominal, desidratação, hipovolemia e choque. O diagnóstico clínico da parvovirose é apenas sugestivo, uma vez que os sinais clínicos são inespecíficos e podem ser confundidos com outras doenças, podendo estar associada a altos níveis de morbidade e mortalidade em animais não tratados. Para diagnóstico definitivo e laboratorial podem ser utilizados vários métodos, tais como, isolamento viral, microscopia eletrônica, reação de hemaglutinação, reação de inibição da hemaglutinação, testes imunoenzimáticos, reação em cadeia da polimerase, ensaio imunocromatográfico, teste de imunofluorescência e análise imunohistoquímica. O tratamento para a doença se baseia no controle dos sinais clínicos através da reposição de fluidos e eletrólitos, antieméticos, antibioticoterapia, de amplo espectro para suporte da infecção bacteriana secundária por translocação, antivirais e até mesmo imunomoduladores (GREENE, 2015).

No Brasil, os primeiros surtos de parvovirose canina ocorreram por volta dos anos 80, quando o cão doméstico começa a se tornar presente nos lares brasileiros, ou seja, começa a ganhar mais importância. De animais adquiridos para pets intradomiciliares e não apenas cães para guarda, conferindo ainda uma maior população de cães domiciliados, o que favoreceu a disseminação viral. Segundo RODRIGUES et al. (2017), a isso se soma a alta resistência dos vírions, que podem permanecer viáveis por meses ou anos em temperatura ambiente. A partir daquele ano, a doença tornou-se endêmica no país, cursando com alta morbidade e letalidade em animais jovens de até 6 meses de idade e até mesmo cães adultos sem protocolo vacinal atualizado.

A novidade

Os imunomoduladores são substâncias que atuam no sistema imunológico modificando a resposta orgânica contra microrganismos patogênicos, por meio da produção de interferon e seus indutores. Os imunomoduladores podem exacerbar ou reduzir a resposta imune, sendo divididos respectivamente em imunoestimuladores, que conduzem ao aumento da imunidade inata e adaptativa, e imunossupressores, que diminuem a atividade do sistema imune, o que pode ser importante quando se pensa na produção de citocinas pró-inflamatórias (LIMA, 2007).

Há situações na medicina veterinária em que o uso de imunomoduladores pode ser útil para modular a resposta imune do animal, no que tange a aumentar a sua capacidade de responder à infecções, e também no tratamento de doenças infectocontagiosas imunossupressoras ou multifatoriais (CASTRUCCI et al, 1994 apud APPOLINÁRIO et al, 2007).

Algumas pesquisas realizadas

Interferon-ômega

Interferons (IFN) do tipo I são citocinas liberadas por células da imunidade inata e células endoteliais quando estas são infectadas por um vírus e detectam a presença de RNA viral. Os IFN atuam em células vizinhas e são responsáveis por:

(1) estimular a produção de proteínas antivirais

(2) induzir a síntese de receptores – para imunoglobulinas (Ig) e para proteínas do sistema complemento – em macrófagos e monócitos

(3) aumentar a resistência de células à infecção viral

(4) aumentar a expressão de moléculas MHC

(5) estimular macrófagos e células NK, ou seja, estimulam no organismo uma resposta inflamatória em resposta ao vírus

A princípio, houve uma tentativa de terapia com IFN-alfa, um IFN do tipo 1 que é produzido em grande quantidade por células dendríticas, linfócitos, monócitos e macrófagos, e atua inibindo a replicação viral e estimulando células do sistema imunológico (TIZARD, 2014.), no entanto, IFN-alfa se demonstrou uma droga com muitos efeitos colaterais.

O IFN-w é outro IFN de tipo 1 que é produzido por linfócitos e monócitos e demonstrou resultados na terapia contra parvovirose. Essa citocina, assim como o IFN-alfa, inibe a replicação viral e produz uma resposta antiviral. O IFN-w está associado a uma resposta imune não específica, atuando a partir do aumento de proteínas de fase aguda – proteína C reativa, alfa-1-glicoproteína, amiloide – e aumento de atividade fagocitária de macrófagos e células NK (TIZARD, 2014).

Para o tratamento, utiliza-se interferon-w recombinante de origem felina 2,5 mu/kg, IV, SID, por 3 dias (MARTIN et al, 2002). Essa terapia se mostrou eficaz na diminuição da febre, vômito, diarreia, mortalidade e no aumento de apetite.

 

Resultados do Interferon-ômega

No trabalho intitulado “Treatment of canine parvoviral enteritis with interferon-omega in a placebo-controlled field trial” (DE MARI, K. et al, 2003) foi avaliada a eficácia clínica de um Interferon Felino Recombinante (IFN tipo ômega) em condições de campo para o tratamento de cães com enterite parvoviral.

Evolução temporal dos escores clínicos dos cães nos grupos tratados com interferon (IFN) e placebo

Noventa e quatro cães de um a vinte e oito meses de idade, foram aleatoriamente distribuídos em dois grupos, onde parte recebeu placebo e parte recebeu o interferon felino recombinante tipo ômega de forma intravenosa. Ambos foram administrados uma vez ao dia durante três dias consecutivos, e os animais foram monitorados para sinais clínicos e mortalidade durante dez dias.

Os dados de 92 casos interpretáveis (43 tratados com interferon e 49 com placebo) mostraram que os sinais clínicos dos animais tratados com IFN melhoraram significativamente em comparação com os animais do grupo controle , e que havia apenas três mortes no grupo dos animais tratados com interferon em comparação com 14 mortes no grupo que recebeu placebo, o que corresponde a 4,4 vezes de redução.

Taxas de sobrevivência dos cães tratados com interferon (IFN) e grupos placebo

Há ainda um outro trabalho intitulado “Clinical Effects of the Recombinant Feline Interferon-omega on Experimental Parvovirus Infection in Beagle Dogs” (ISHIWATA et al, 1998) em que cães beagle de três a quatro meses de idade receberam uma infecção experimental por parvovírus canino tipo 2 (CPV-2).

Sinais clínicos como pirexia, vômito, anorexia e diarreia foram observados no quarto dia após a inoculação oral do agente em quase todos os cães do experimento. A partir desse dia, os cães foram tratados com Interferon-ômega felino recombinante administrado por via intravenosa durante três dias consecutivos.

Observou-se que quatro de doze cães que foram tratados com o Interferon-ômega felino recombinante, anteriormente apresentavam enterite clínica grave associada à diarreia intermitente, e durante a avaliação da condição fecal desses cães revelou que o tratamento com interferon mudou significativamente a enterite de uma forma grave para leve.

Além disso, os animais que eram tratados com Interferon-ômega felino recombinante pela manhã já não expressavam enterite clínica à noite, sugerindo um efeito rápido do interferon. Outros sinais como vômito e anorexia também diminuíram nesses animais, o que sugere que a substância pode reduzir a enterite grave causada pela infecção pelo parvovírus canino tipo 2 em cães.

Transferon

O Transferon é um imunomodulador que tem como base o extrato de leucócitos dialisáveis (Human Dialyzable Leukocyte Extract‐hDLE), tendo como principal componente a ubiquitina (mUb) sem os dois últimos resíduos de glicina (Ub∆GG) (MUÑOZ et al, 2021). Usado em pacientes humanos com quadro clínico de septicemia e Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS), houve resultados de aumento de sobrevida. Além disso, também promoveu um auxílio terapêutico na medicina veterinária, em um estudo com filhotes de cães com sepse e SIRS, uma vez que a infecção viral por (Canine parvovirus)-2 favorece a infecção e translocação bacteriana secundária com destruição das criptas intestinais, neutropenia e imunossupressão devido à atrofia do timo, exacerbando os sinais clínicos e levando à síndrome de disfunção de múltiplos órgãos e até mesmo ao óbito do paciente.

MUÑOZ et al (2021) traz em seu artigo um possível mecanismo de ação da ubiquitina, que controlaria a inflamação na sepse por meio da ação direta sobre o receptor CXCR4, expresso em macrófagos, neutrófilos e no nervo vago. Também segundo o estudo, o “arco anti-inflamatório vagal” resultaria num efeito sistêmico com queda dos parâmetros inflamatórios solúveis e celulares – diminuindo a contagem de linfócitos e neutrófilos e dos níveis de epinefrina e cortisol. Dessa forma, explicaria como o Transferon teria envolvimento nas melhoras clínicas dos animais discutidas no artigo.

Resultados do Transferon

No trabalho “Increased survival in puppies affected by Canine Parvovirus type II using an immunomodulator as a therapeutic aid” (MUÑOZ et al, 2021), foi demonstrado a eficácia do fármaco transferon (“Human Dialyable Leukocyte Extract-hDLE”) no tratamento de filhotes de cães com parvovirose. Foram utilizados 18 filhotes confirmados como positivos para parvovirose, dentre eles, 7 foram tratados de modo tradicional (CT+V) e 11 fizeram tratamento convencional mais a utilização do imunomodulador transferon (CT+I). O grupo apresentava 45% dos filhotes Sem Raça Definida (SRD) e 55% de filhotes de raça, 4 dos 18 tinham histórico de vacinação.

Os resultados demonstraram que houve aumento de 40% na taxa de sobrevivência e aumento no tempo de sobrevivência no grupo de filhotes que foram tratados com o transferon. Além disso, o grupo CT+I mostrou animais com menos sinais severos da doença e, enquanto as mortes dentro do grupo CT+V ocorreram entre os dias 1 e 2, as mortes do grupo CT+I ocorreram nos dias 2 e 3.

Taxas de sobrevivência dos cães nos dois grupos experimentais

O referido estudo também mediu a concentração de neutrófilos circulantes de filhotes afetados. Percebe-se que os animais tratados com o imunomodulador apresentaram uma queda significativa na quantidade de neutrófilos, principalmente quando comparados aos resultados do dia 4.

Neutrófilos circulantes nos diferentes dias e grupos

Os animais tratados com imunomodulação apresentaram melhores concentrações de hematócrito, hemoglobina, eritrócitos e proteínas plasmáticas, isso demonstra que esse grupo teve menos lesão no epitélio intestinal, juntamente com a avaliação clínica dos animais, que apresentaram melhor escore corporal.

Considerações Finais

Podemos constatar, a partir da grande quantidade de testes de diagnóstico e protocolos de tratamento para parvovirose, a sua importância na rotina clínica de pequenos animais e a necessidade da busca de novos métodos de tratamento. Nesse trabalho foram apresentados imunomoduladores que, administrados em grupos de caninos afetados pela parvovirose, demonstraram relativas melhoras clínicas e, que apesar de recentes, se mostraram promissores na área de tratamento da doença.

Referências

  • APPOLINÁRIO, Camila Michele; MEGID, Jane. Uso de imunomoduladores nas enfermidades infecciosas dos animais domésticos.Semina: Ciências Agrárias , Londrina, jul./set. 2007.
  • DE MARI, K. et al. Treatment of canine parvoviral enteritis with interferon‐omega in a placebo‐controlled field trial.Veterinary Record, v. 152, n. 4, p. 105-108, 2003.
  • GREENE, Craig E., DVM, MS, DACVIM. Doenças Infecciosas em Cães e Gatos: Enterite Viral Canina. ­4. ed. ­Rio de Janeiro: Grupo Editorial Nacional, 2015.
  • ISHIWATA, Kenji; MINAGAWA, Tomonori; KAJIMOTO, Tsunesuke. Clinical effects of the recombinant feline interferon-ω on experimental parvovirus infection in Beagle dogs. Journal of Veterinary Medical Science, v. 60, n. 8, p. 911-917, 1998.
  • LIMA, Hermênio Cavalcante. Fatos e mitos sobre imunomoduladores.Anais brasileiros de dermatologia, v. 82, p. 207-221, 2007.
  • MARTIN, Virginie et al. Treatment of canine parvoviral enteritis with interferon-omega in a placebo-controlled challenge trial.Veterinary microbiology, v. 89, n. 2-3, p. 115-127, 2002.
  • MUÑOZ, Adriana I. et al. Increased survival in puppies affected by Canine Parvovirus type II using an immunomodulator as a therapeutic aid.Scientific Reports, v. 11, n. 1, p. 19864, 2021.
  • RODRIGUES, Bruna et al. Diagnóstico e tratamento de parvovirose canina: revisão de literatura. Brazilian Journal of Surgery and Clinical Research: BJSCR, [s. l.], v. 21, n. 2, p. 127-134, Dez. 2017.
  • TIZARD, Ian R. Imunologia Veterinária, 9ª ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
Por José Miguel da Silva, Markos Panayotis de Oliveira, Millena Ramos Alves e Rebecca Feitosa de Oliveira – Discentes do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Sob a supervisão de Clayton Bernardinelli Gitti – Docente do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro