Por Carlos Alberto Magioli, Membro Titular da Academia de Medicina Veterinária no RJ
Ao reconhecer a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, a Política Nacional das Relações de Consumo objetiva o atendimento das suas necessidades em respeito à dignidade, saúde e segurança, proteção de seus interesses econômicos e melhoria da sua qualidade de vida.
A efetiva responsabilidade dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em fiscalizar a produção, industrialização, distribuição, consumo e publicidade de alimentos, representa o princípio da preservação da vida, da saúde, da segurança e do bem-estar do consumidor.
Parecer da Organização Mundial de Saúde Animal
Como que também reconhecendo esta vulnerabilidade, o Código Sanitário para Animais Terrestres da Organização Mundial de Saúde Animal – OMSA, definiu como princípios fundamentais para os serviços veterinários de fiscalização a qualificação profissional, a independência, a imparcialidade, a integridade, a objetividade, com legislação adequada e serviço organizados. Recomendou que os profissionais dos serviços veterinários sejam independente se que não estejam submetidos a nenhuma pressão comercial, financeira, hierárquica, política ou de outro tipo que possa influir em seu juízo e em suas decisões.
O Brasil contrariando as orientações da OMSA da qual é membro, em 2022 instituiu, através de legislação própria, os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária, que dentre outras determinações, transfere para as empresas fabricantes a responsabilidade pela qualidade dos produtos elaborados o que é razoável, considerando que é legítima a responsabilidade de quem produz pela qualidade daquilo que é produzido.
Entretanto junto a esta atribuição e de forma disfarçada, transferiu também para a iniciativa privada, conforme há muito vinha almejando o órgão central de inspeção de produtos de origem animal, a competência da fiscalização industrial e sanitária dos produtos de origem animal, contrariando o princípio basilar mundial de ser esta atividade exclusiva do poder de polícia administrativa e sanitária, própria e de competência inequívoca do poder público.
Documento Histórico
Em 2015 diante de uma das primeiras tentativas das autoridades para legitimar a discrepância da privatização do Serviço de Inspeção, por iniciativa do Professor Zander Barreto Miranda, foi constituída junto a Faculdade de Veterinária da Universidade Federal Fluminense, comissão de especialistas formada além do Professor Zander Barreto Miranda, pelos Médicos Veterinários Elmo Rampini de Souza, Eduardo Batista Borges, André Sampaio Ferreira, Carlos Alberto Magioli e Ronaldo Gil Pereira, com o objetivo de rechaçar tal iniciativa para o Serviço de Inspeção Federal, cujo documento final “Privatização dos Serviços de Inspeção dos Produtos de Origem Animal: Riscos à Saúde Pública e Consequências Econômicas” repassado as autoridades afeitas a questão, alertava que o poder de Polícia Sanitária era intransferível e indelegável a particulares e que sem esse poder, não se realizaria e não se executaria a atividade administrativa em um órgão fiscal do Poder Público.
A transferência a particulares por lei, por convênios, por credenciamento, ou por quaisquer atos legislativos ou administrativos de atividades inerentes à natureza do Poder Público, além de afrontar irreparavelmente os mandamentos legais e constitucionais, subverte a estrutura natural do Estado, assegurada em princípios e dispositivos constitucionais o que seria inadmissível.
A transmutação da inspeção e fiscalização industrial e sanitária dos produtos de origem animal à área privada, significaria simplesmente a sua extinção, advindo, como consequência imediata e com efeitos tácitos e reais, o caos na saúde pública, o que no momento atual está por acontecer.
Direitos do Consumidor
Não se pode desconsiderar que uma indústria de alimentos tenha sempre isenção com respeito a qualidade nutritiva e sanitária do produto que elabora em confronto com a possibilidade de maiores ganhos financeiros para o seu empreendimento comercial. Em todos os países que tem a segurança alimentar como meta básica e intransferível, a garantia é dada pelo órgão público de fiscalização sem qualquer concessão e com penalizações pesadas frente a eventuais inconformidades durante a produção ou no produto final. Para eles ao contrário do que está prestes a se delinear em nosso país, a saúde pública é tratada de forma séria e sem exceções que possam trazer Prejuízos ao consumidor.
Tal fato que afronta somente os direitos dos consumidores brasileiros, vez que para os estrangeiros esta modalidade de pseudo fiscalização não é aceita pelos países importadores, culmina agora com a normatização da citada lei do autocontrole, ao permitir que pessoas jurídicas sejam contratadas pelos agentes controladores de estabelecimentos que realizam o abate de animais, para prestação de serviços técnicos operacionais de inspeção ante mortem e post mortem de animais destinados ao abate, ou seja, o próprio fiscalizado vai contratar e financiar quem o vai fiscalizar, como se a saúde pública fosse um mero faz de conta onde a empresa faz de conta que é fiscalizada, a pessoa jurídica contratada faz de conta que fiscaliza e o consumidor faz de conta que acredita.
Não se pode imaginar que o meio científico brasileiro estudioso da questão, possa aceitar tamanho descalabro que venha a desconstruir todos os conhecimentos acumulados durante mais de um século e que levou o Brasil a ponta da produção agropecuária mundial e prestes a perder por mero capricho de alguns que preferem ignorar tal relevância a representar risco a saúde do consumidor patrício. Pobre consumidor.
