É comum pessoas menos avisadas demonstrarem pouca preocupação com a origem dos alimentos que consomem, sob o o argumento de que sempre o fizeram e nunca adoeceram por isto, esquecendo-se de que em algum momento de suas vidas foram acometidas por algum distúrbios gastrointestinais ou de outra sorte, não os associando a uma causa possivelmente alimentar.
No artigo intitulado “A percepção do consumidor diante dos riscos alimentares: A importância da segurança dos alimentos” publicado na Revista Âmbito Jurídico, a autora Adriana Carvalho Pinto Vieira cita que a alimentação, como qualquer outra atividade humana, não está isenta de riscos e nunca esteve, porém, essas contingências são atualmente melhores conhecidas e com meios mais eficazes para as medir, controlar, prevenir e evitar através de mecanismos organizacionais e marco regulatório criados para isso. Os consumidores no passado tinham em sua concepção a ideia de como os alimentos eram produzidos, sobretudo aqueles com algum contato com o meio rural, mas as novas gerações perderam qualquer referência sobre estas questões.
Responsabilidade de todos
Conforme trabalho da Organização Panamericana de Saúde – OPAS, intitulado “Segurança dos Alimentos é Responsabilidade de Todos” a cada ano, quase uma em cada dez pessoas no mundo (cerca de 600 milhões de pessoas) adoece e 420 mil morrem depois de ingerir alimentos contaminados por bactérias, vírus, parasitas ou substâncias químicas e nas Américas é estimado que 77 milhões de pessoas sofram um episódio de doenças transmitidas por alimentos a cada ano, metade delas crianças com menos de 5 anos de idade.
Doenças próprias dos animais ou agentes que os tem como portadores, podem ser transmitidas aos seres humanos pelo contato direto ou pela ingestão de alimentos deles derivados, sendo primordial que estas possibilidades sejam atenuadas ou eliminadas através de controles sanitários dos próprios animais e higiênicos e tecnológicos durante a obtenção dos seus produtos derivados. Por esta razão a legislação brasileira estabelece a obrigatoriedade de prévia fiscalização, sob o ponto de vista industrial e sanitário, de todos os produtos de origem animal, comestíveis e não comestíveis, exercida por órgãos públicos com ações padronizada em bases cientificas a garantir as suas inocuidades para consumo.
Associada a esta garantia oficial deve estar a responsabilidade do consumidor no critério de seleção do produto que irá adquirir considerando não somente os aspectos de apresentação e gosto pessoal, mas principalmente para os alimentos de origem animal, a percepção da qualidade sanitária avaliada através da origem, se passou pela fiscalização prévia e pelo tratamento adequado em todas as fases da cadeia alimentar, verificado através dos aspectos sensoriais no momento da compra. Cabe ao consumidor estar sempre informado sobre como reconhecer os alimentos adequados de forma a rechaçar os que podem comprometer a sua saúde.
Esse reconhecimento inclui a garantia do órgão fiscalizador impressa no rótulo do produto, demonstrando o diferencial entre os de qualidade para consumo e os sem origem conhecida, os denominados clandestinos, cuja qualidade sanitária não tem quem certifique a não ser o próprio fabricante muitas vezes inapto para o mister de elaborar alimentos.
Maior exportador de carne
Embasado nesta garantia de qualidade o Brasil alcançou o status de maior exportador mundial de carne bovina e de aves, comercializando para mais de 200 países, que exigem dentre outros requisitos, que o governo federal através do SIF, Serviço de Inspeção Federal a chancele não somente com respeito as condições sanitárias dos animais que lhes deram origem, como também as tecnológicas e higiênicas na transformação industrial. Da mesma forma os produtos para consumo interno também passam pelas mesmas exigências de fiscalização, agora incluindo os órgãos estaduais e municipais, com as mesmas atribuições de garantir a qualidade, principalmente sanitária, da carne e seus derivados, dos laticínios, pescados e seus derivados, ovos e mel de abelhas, ou seja, de todos os produtos de origem animal.
Como exemplo da importância desta prévia fiscalização é conveniente considerar que,no período de 28/03/2018 a 24/10/2018 dos 580 bovinos abatidos em estabelecimentos industriais sob fiscalização da Coordenadoria de Controle de Qualidade de Produtos Agropecuários Industrializados, SIE-RJ da Secretaria de Estado de Agricultura e Pecuária, SEAPEC-RJ, foram condenadas, ou seja, rejeitadas para consumo humano, 53 carcaças de animais acometidos por tuberculose, representando 9,13% do total abatido.
Considerando que o peso médio das carcaças de bovinos abatidos no Brasil no ano de 2018, segundo o Anuário Estatístico do IBGE 2019, foi de 249,34 kg, com os conhecimentos técnicos a demonstrar que os ossos representam em média 20% do peso da carcaça, chegar-se-ia então a 199,47 kg de carne por carcaça, totalizando então as 53 carcaças o montante de 10.571,91 kg de carne. Em um exercício de abstração considerando-se o consumo de 0,300 kg desta carne por pessoa, 31.715 a teriam consumido caso não tivesse passado pelo crivo da fiscalização e rejeitada como imprópria para consumo.
É evidente que qualquer consumidor, mesmo desconhecendo que existem doenças dos animais transmissíveis ao homem pelos alimentos deles derivados, rejeitaria uma carne ou um leite originários de um animal que soubesse doente, por certamente julga-los repugnantes ou passíveis de lhes causar agravo de saúde, não se dando conta que a possibilidade de uma situação semelhante se apresentar é mais comum do que possa imaginar.
Outro dado importante para reflexão é encontrado no mesmo anuário do IBGE, que registra que no ano de 2019 foram abatidas 32,44 milhões de cabeças de bovinos submetidas a algum tipo de inspeção sanitária (Federal, Estadual ou Municipal) e recebidas nos curtumes 33,34 milhões de peças de couro, ou seja, 900 mil peças a mais do que os animais abatidos, caracterizando que este excedente de 900 mil bovinos não passou por qualquer tipo de fiscalização que atestasse as condições sanitárias próprias, para que seus derivados pudessem servir como alimento sem risco para o consumidor. É importante registrar que estes valores certamente são bem maiores do que os tabulados pois somente são considerados pelo IBGE curtumes que processam mais de 5000 peças de couro por ano, não sendo computados portanto, dezenas ou quem sabe centenas de pequenas produções não atingidas pelas estatísticas totalizando bem mais do que os 900 mil animais.
Este mesmo raciocínio se aplica também a produção de suínos, de aves, de leite e produtos derivados, de pescado, de ovos e de mel de abelhas, todos sujeitos a estas mesmas discrepâncias entre aqueles que passaram pelo crivo do serviço oficial de fiscalização e os que foram oferecidos ao consumo sem esta obrigatoriedade, sujeitos, portanto, a representarem agravo a saúde de quem os vai consumir.
No artigo “potencial de transmissão de enfermidades pela carne, leite e derivados de caprinos e ovinos” os autores Francisco Selmo Fernandes Alves e Raymundo Rizaldo Pinheiro, Médicos Veterinários – Pesquisadores da Embrapa Caprinos, relatam que as zoonoses apresentam um potencial de disseminação através dos alimentos sendo fator de elevada importância e preocupação das autoridades veterinárias e de saúde pública. Alguns estudos em sanidade animal consideram que as zoonoses clássicas como tuberculose, brucelose, triquinelose e cisticercose são questões prioritárias no campo da salubridade dos alimentos.
O Programa de Proteção Jurídico-Sanitária dos Consumidores de Produtos de Origem Animal (POA) criado pelo Ministério Público de Santa Catarina para orientar produtores e comerciantes em benefício da sociedade, faz como principal recomendação a verificação de ser o produto inspecionado através da identificação dos carimbos da inspeção sanitária federal (SIF) estadual(SIE) ou municipal(SIM) e enfaticamente recomendando não comprar qualquer produto de origem animal que não tenha este selo de fiscalização.
Recomenda ainda ser imprescindível que estabelecimentos de abate possuam autorização para funcionar emitida pela autoridade competente de cada localidade e que os animais passem por exames clínicos, realizados por fiscal sanitarista e exames sistemáticos de extrema importância, das carcaças e vísceras como forma de prevenção da transmissão de doenças por meio dos produtos de origem animal, principalmente aquelas causadas por bactérias e parasitas.
Um guia com cinco etapas
A Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO) e a Organização Mundial de Saúde(OMS) criaram um guia com 5 etapas para mostrar como todos, produtores, consumidores e governo estão envolvidos, fazendo a diferença de forma sustentada, para a segurança dos alimentos. Assim recomendam como atribuição do governo garantir alimentos seguros, dos produtores a adoção de boas práticas de fabricação, dos operadores garantir que os alimentos sejam transportados, armazenados e preparados com segurança e dos consumidores o acesso a informações oportunas, claras e confiáveis sobre os riscos nutricionais e de doenças associadas às suas escolhas alimentares. Governos, órgãos econômicos regionais, organizações da ONU, agências de desenvolvimento, organizações comerciais, grupos de consumidores, de produtores, instituições acadêmicas e de pesquisa e entidades do setor privado devem trabalhar juntos em questões de segurança dos alimentos.
Não é razoável então que se possa imaginar que uma enorme estrutura governamental seja federal, estadual, municipal ou mesmo internacional objetivando emitir normas, controlar e fiscalizar desde a área primária, no campo, até o comércio varejista, com recursos financeiros pagos pelo contribuinte, com a finalidade de atestar a qualidade de um alimento a disposição do consumidor, possa ser uma mera ação burocrática sem importância, apenas para impedir a livre iniciativa de alguns que desejam produzi-los de qualquer forma.
Um selo que tem valor
Por outro lado, imaginar que todo alimento tenha a mesma qualidade independente da fonte de produção e que por isso o consumo indiscriminado não tem qualquer interferência na vida de quem o utiliza é apregoar uma inverdade, com sérias possibilidades de comprometimentos na saúde pública e até com reflexos econômicos, pela demanda de instituições de saúde no atendimento aos acometidos e consequências como perda das atividades profissionais dos pacientes e respectivas diminuições de suas produções laborais.
Cabe assim ao consumidor avaliar se a chancela oficial impressa nos rótulos dos produtos de origem animal é a indispensável garantia de qualidade a respaldar os padrões técnicos estabelecidos para um alimento seguro ou um mero selo instituído com objetivo apenas burocrático sem qualquer efeito prático.