Por alimento artesanal entende-se aquele que foi submetido a processo de elaboração em pequena escala, com características tradicionais ou regionais próprias, desde que atendidas às exigências de qualidade que se espera de um produto próprio para consumo humano, sob o ponto de vista físico, químico e microbiológico. Portanto não se pode esperar que haja uma generalização dos chamados produtos artesanais de forma a permitir que qualquer deles possa assim ser denominado pelo simples fato de prover de produção familiar sem as características de tradição e regionalização próprias.

Por modismo ou por entenderem serem detentoras de melhores informações, muitas pessoas procuram atualmente os alimentos orgânicos e os artesanais como forma de uma alimentação mais segura e saudável, fator que tem levado os pequenos produtores a se esmerarem nos cuidados nas suas obtenções.

O Artigo intitulado “Comportamento do Consumidor e o Mercado Informal de Produtos Artesanais” de autoria de Lelis Maia Brito, Ana Flávia Xavier, apresentado na Conferência Latino americana CLAV 2016, evidencia que a queda de confiança de consumidores em processos de produção de alimentos pela indústria agroalimentar, tem concorrido para as mudanças nos hábitos alimentares, passando estes a considerar valores expressos por meio da relação mais próxima entre consumidor e produtor, aspectos históricos envolvendo tradição, modo de vida, símbolos, imaginário e a cultura do processo de produção. Há uma discussão entre a qualidade dos alimentos produzidos em condições formais, industrial, que obedecem a padrões de qualidade regulamentares e exigências técnicas e aqueles fruto do “mercado informal”, onde a dimensão da qualidade é instituída com base nos valores culturais. Neste contexto insere-se a discussão do comportamento do consumidor por enfatizar que o consumo não está mais ligado somente às questões econômicas, mas também a questões simbólicas e culturais, sendo possível considerar que o simbolismo e a cultura inseridos no mercado informal de produtos artesanais, possuem afinidades com os valores cultuados por segmentos de consumidores.

Entretanto, independente de ser artesanal ou industrial, o que se espera de um produto para a alimentação humana é que ele reúna as condições próprias no que diz respeito a sua apresentação ser agradável ao consumidor, com valor nutricional característico de sua composição e hígido sob o aspecto sanitário.

Constitui-se de importância notar que a literatura especializada pontua que o crescimento das doenças transmitida por alimentos no mundo ocorre muitas vezes por negligência dos produtores quanto aos riscos inerentes a manipulação inadequada, aliado a falta de conhecimento do consumidor sobre os perigos a que são submetidos ao consumirem alimentos não seguro sanitariamente. É indispensável que qualquer alimento obedeça a tríade de ser sadio, seguro e confiável.

Para a Agencia EMBRAPA de Informação Tecnológica, qualidade de um alimento se refere às suas propriedades ou aos atributos capazes de distingui-los e que permitem a sua aceitação, aprovação ou recusa. A dimensão da qualidade está ligada à saúde e segurança do consumidor e de como ele vê o produto, entendendo assim, como alimento seguro, aquele preparado, conservado, transportado e exposto à venda ou consumido em condições que não apresentem riscos à saúde de quem o vai consumir.

Complementarmente, o artigo 196 da constituição federal especifica a saúde como sendo direito de todos, tendo o Estado o dever de garantir à redução do risco de doenças e de outros agravos aos cidadãos, como proteção a vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

Portanto a característica de ser artesanal não é o único atributo a ser considerado para se conferir ao alimento a qualidade nutritiva que dele se espera e muito menos a sua inocuidade para consumo humano. Constantemente são noticiados problemas sanitários acometendo individualmente ou grupo de pessoas, causados por alimentos elaborados sem qualquer observância da qualidade sanitária.

Deve-se considerar que esta qualidade sanitária de um produto de origem animal ou vegetal inicia-se pelas boas condições de saúde do animal vivo ou fitossanitárias, da matéria prima que lhe deu origem. No caso dos primeiros, são reconhecidas as implicações de doenças dos animais com as chamadas zoonoses que são aquelas transmitidas entre seres humanos e animais através de contato direto ou principalmente pelo consumo de alimentos comprometidos.

Com este argumento e como forma de cumprimento do papel constitucional do Estado de zelar pela saúde do cidadão, a lei 1283 de 1950 estabeleceu a obrigatoriedade de prévia fiscalização, sob o ponto de vista industrial e sanitário, de todos os produtos de origem animal e complementarmente, através da lei 7889 de 1989, definiu quais os órgãos oficiais responsáveis pelo exercício desta fiscalização em função da área de comercialização do produto.

Entretanto, modificando este conceito, o governo federal através da lei 13.680 de 14 de junho de 2018 passou a permitir a imediata comercialização, independente de regulamentação, de produtos de origem animal produzidos de forma artesanal desde que, submetidos preferencialmente e de forma orientadora, à fiscalização por órgãos de saúde pública dos Estados e do Distrito Federal, mantendo as atribuições de fiscalização da produção a cargo dos órgãos de agricultura, federal, estadual ou municipal, conforme determinam as leis 1.283 de 1950 e 7.889 de 1989, levando a interpretações confusas entre os produtores e os órgãos de fiscalização.

Importante assinalar que a referida lei não especifica o que seria produto artesanal e ao ficar vaga esta definição, remete a possibilidade de interpretações casuais ou interesseiras.

Entretanto a par dos alimentos artesanais elaborados sob condições adequadas de higiene e em locais próprios, com o artesão, consciente da sua importância em saúde pública na observância dos preceitos legais e sanitários, tem-se um grande número daqueles que por desconhecimento ou por negligencia, aproveitam-se da ignorância de parte significativa dos consumidores para, a pretexto de manterem uma tradição, oferecerem alimentos que sob a chancela de artesanal, constituem-se na verdade em extremo risco para quem os vai consumir.

No trabalho intitulado “Produção Brasileira de Alimentos Artesanais e Tradicionais” de maio de 2018 elaborado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR juntamente com a Confederação Nacional da Agricultura CNA, está retratado que nos últimos anos a demanda por produtos artesanais tem aumentado com a região sudeste representando 35,5% da produção nacional, seguida da centro-oeste com 29%, nordeste com 24%, sul 6,5% e norte com 5%. Na mesma pesquisa 61,0% dos artesãos entrevistados responderam terem sido capacitados para o exercício da atividade de produção, apesar de 54,8% admitirem não terem condições de atender a legislação quanto ao processamento do produto, mas mesmo assim 95,9% responderam que produzem alimentos seguros com garantia de qualidade para o consumidor, o que parece um paradoxo, uma vez que, esta garantia inclui o atendimento aos ditames legais incluindo as normas sanitárias de boas práticas de fabricação, o que mais da metade informou não atender.

Exemplo desta contradição está no artigo publicado na Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, edição de novembro/dezembro de 2010 sob o título “Aspectos Sanitários do Queijo Minas Artesanal Comercializado em Feiras Livres” a demonstrar que as contagens de coliformes totais, termotolerantes e de Staphylococcus coagulase positiva em queijos Minas artesanal comercializados em feiras livres na cidade de Uberlândia -MG indicam que estes queijos não são produzidos e comercializados sob normas higiênico-sanitárias adequadas.

Outro exemplo marcante está no artigo intitulado “Avaliação Higiênico Sanitária de Linguiças Tipo Frescal Comercializadas a Granel por Supermercados e Produzidas Artesanalmente no Município de Xaxim – SC” de autoria de Janaina Alberti e Alexandra Nava e publicado na Revista Unoesc & Ciência – ACBS, Joaçaba, v. 5, n. 1, 2014, que concluiu que 67% das amostras adquiridas em supermercados e 100% das amostras produzidas artesanalmente apresentaram-se insatisfatórias para coliformes totais. Nas análises de Staphlylococcus aureus coagulase positiva, 50% das amostras de supermercados e 100% das artesanais apresentaram-se contaminadas, permitindo concluir que as amostras de linguiças estavam em desacordo com os padrões microbiológicos estabelecidos pela legislação.

É oportuno abordar que no geral observa-se a falta de condições mínimas de higiene em grande parte das propriedades rurais no Brasil, repercutindo na ignorância dos produtores sobre práticas adequadas de manipulação de alimentos, acrescido do desconhecimento do consumidor, fator que se enquadra como insegurança alimentar leve na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), instituída pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que é quando pessoas se sentem na iminência de sofrer restrição quanto a quantidade e qualidade dos alimentos.

Não se trata de descaracterizar todos os produtos artesanais e considera-los impróprios para o consumo, certamente que para uma grande parte deles, os aspectos regionais e principalmente as condições adequadas de preparo e comercialização são observadas e cumpridas, entretanto o que se espera é que todos, sem discriminação, obedeçam aos princípios elementares de boas práticas de elaboração em consonância com o artigo 196 da Constituição Federal que considera a saúde como direito de todo cidadão.