A segurança alimentar e nutricional consiste no direito regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais. A este direito estão associadas práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
Na qualidade de um alimento, fatores como o valor nutritivo, a apresentação, o sabor, as características dos ingredientes e aditivos de sua formulação e principalmente as suas condições sanitárias são essenciais. A carne, fruto de modificações físicas e químicas no tecido muscular do animal abatido, terá uma boa condição para consumo humano se estas modificações acontecerem a partir de sua higidez sanitária e o desenvolvimento de técnicas adequadas de abate.
O começo
Um alimento de qualidade começa com uma matéria-prima nas mesmas condições. Não existe processo tecnológico por mais refinado e sofisticado, que possa tornar bom um produto a partir de matéria-prima de má qualidade, entretanto por falha ou má condução do processo, uma matéria-prima boa pode ensejar em um produto ruim.
Assim, na carne ou em seus produtos derivados, a matéria-prima é o animal vivo, sendo fundamental as suas condições de saúde, principalmente com respeito às chamadas zoonoses que são as doenças transmitidas de diversas formas entre seres humanos e animais.
Os números
No Brasil, de acordo com o IBGE, no ano de 2016, foram abatidos nos matadouros sujeitos à inspeção sanitária, 29.670.000 cabeças de bovinos, 42.320.000 de suínos e 5.860.000.000 de aves, somente para descrever as principais espécies.
O mesmo instituto registra que foram recebidos e processados pelos curtumes neste mesmo período, 33.618.000 de peles de bovinos, havendo como consequência 3.948.000 peles a mais do que o número de animais que lhes deram origem, entendendo-se que de um bovino somente se obtém uma pele. Registre-se que estes números do IBGE referem-se apenas aos curtumes que receberam mais de 5.000 peles anuais, não estando, portanto, computadas algumas milhares ou talvez milhões recebidas em pequenos estabelecimentos, quantitativo impossível de se estabelecer.
Os clandestinos
Então de onde provêm estas peles em excesso? Certamente do abate dos animais em estabelecimentos não sujeitos a qualquer tipo de fiscalização, os denominados matadouros clandestinos, que se encontram espalhados por todos os rincões deste país.
Nestes estabelecimentos, bovinos de todas as condições, na maioria das vezes doentes, são submetidos a um ritual comparado aos mais terríveis massacres, abatidos sem as mínimas condições de higiene, muitas vezes embaixo de árvores ou em galpões improvisados, com piso de terra batida ou com arremedo de pavimentação, por pessoas e até crianças sem qualquer preparo e rodeadas por cães e outros animais a espera de restos que são atirados ali mesmo, compondo um quadro dantesco no aguardo do consumidor que irá adquirir a “carne fresquinha” sem o menor conhecimento dos riscos a que podem estar submetidos.
O sangue que escorre dos animais moribundos fica por ali mesmo sendo pisoteado pelos operários desta carnificina, ou conduzido através de valas abertas no próprio solo para córregos ou rios, concorrendo para uma intensa contaminação da água que outras pessoas à frente irão utilizar para se banharem ou para uso doméstico, inclusive para o preparo de alimentos.
Moscas e outros insetos povoam este quadro e não raro, ratos e até mesmo urubus dividem o lauto banquete e deixam a sua colaboração para o processo já acentuado de contaminação da carcaça.
As partes não aproveitadas das carcaças são jogadas nos terrenos ao redor para deleite das aves de rapina, ao fim do qual o odor de carne deteriorada é insuportável, atraindo outros visitantes famintos ou servindo de meio de contaminação ambiental e de transmissão de doenças para outros animais semelhantes.
Estas mesmas condições se repetem para outros animais como suínos, caprinos, aves e até equinos, cuja carne certamente será comercializada como se fosse bovina ou utilizada para preparo da tão apreciada carne seca ou de sol.
Não existe uma estimativa do total de abate sem qualquer tipo de fiscalização (clandestino) no país. Números do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/ USP, indicam terem sido menores do que 10% no ano de 2012. Já o pesquisador da EMBRAPA João Felippe Cury Marinho Mathias, no trabalho intitulado “A Clandestinidade na Produção de Carne no Brasil”, conclui que especialistas do setor apontam uma clandestinidade entre 30% e 50% e que os cenários construídos por ele a partir de 1996 e dentro do modelo proposto levam a resultados em torno de 40%. Com base nos números do IBGE anteriormente citados, o percentual de bovinos abatidos clandestinamente no ano de 2016 foi de 13,30%.
Como a atividade não tem qualquer tipo de controle, é de se esperar que não haja dados confiáveis sobre a sua magnitude tão pouco sobre seus efeitos econômicos e, principalmente, de agravos para a saúde publica.
Um alerta
Conforme Relatório de 2013 da Agência de Alimentos das Nações Unidas, cerca de 70% das novas doenças que infectaram os seres humanos nas últimas décadas têm origem animal, alertando que está se tornando mais comum que doenças mudem de espécies e se espalhe na população, em meio ao crescimento das cadeias de agricultura e de abastecimento alimentar.
Para a Organização Mundial de Saúde, os alimentos não seguros contendo bactérias, vírus, parasitas ou substâncias químicas prejudiciais à saúde são a causa de mais de 200 doenças que vão desde diarreia ao câncer. Doenças diarreicas matam cerca de 2 milhões de pessoas por ano, incluindo muitas crianças, prejudicando a produtividade, sobrecarregando o sistema de saúde pública, reduzindo os ganhos econômicos, impedindo o desenvolvimento socioeconômico e prejudicando as economias nacionais, o turismo e o comércio.
Direito fundamental
A Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar, define no artigo segundo que, a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano inerente à sua dignidade e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
Por certo, as condições descritas anteriormente, que levam à mesa do consumidor uma carne sem qualquer condição de consumo, no geral é típica de pequenas cidades interioranas, raramente afetando diretamente os consumidores das cidades maiores e das capitais, abastecidas através das grandes redes atacadistas e varejistas, em cujo volume de comercialização há pouco espaço para estes produtos sem qualquer fiscalização.
Há de se observar que as condições parecidas como as aqui exemplificadas para carne bovina, também podem acontecer para outros tipos de produtos como laticínios, pescado e carnes de outras espécies de animais, principalmente aqueles cuja tecnologia de elaboração não requeiram processos sofisticados e que as características adversas não sejam de fácil constatação pelo consumidor.
Uma tentativa para resolver esta questão da clandestinidade da carne surgiu através da Portaria 304 de 1996, do Ministério da Agricultura, que determinava que os estabelecimentos de abate de bovinos, bubalinos e suínos, somente poderiam entregar carnes e miúdos para comercialização, com temperatura de até 7 (sete) graus Celsius, distribuídas em cortes padronizados, devidamente embalados e identificados através de rotulagem com as marcas e carimbos oficiais.
Há de se considerar que os estabelecimentos clandestinos, pelas condições relatadas anteriormente, não teriam condições de atender a esta determinação legal, por não reunirem as condições técnicas para realização dos cortes como os padronizados oficialmente, os embalar, identificar e muito menos dar as condições adequadas de conservação à baixa temperatura e os manter assim até a comercialização.
Por contingência, esta Portaria também extinguiria os ultrapassados açougues, onde comumente acontecem as fraudes da venda de carne de menor valor, como cortes nobres e outras irregularidades mais, dando lugar às casas de carne ou butiques de carnes, como já acontece em algumas cidades brasileiras.
Entretanto, através da Portaria 145 de 1998, o Ministério da Agricultura retificou a regulamentação anterior, permitindo novamente a comercialização sob a forma de traseiros e dianteiros, desde que embalados, identificados e acondicionados em containers apropriados, permitindo assim que estas grandes peças pudessem ser fracionadas nos estabelecimentos varejistas, possibilitando o retorno às condições propícias para o incremento da clandestinidade.
O que se pode esperar é que o próprio consumidor como último elo da cadeia alimentar, ao utilizar os direitos que a legislação lhe confere, possa rechaçar esta inadequada e perigosa prática, em prol de um desenvolvimento social e econômico compatível com a importância brasileira.