1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS

O lendário e secular matadouro público municipal de Santa Cruz-RJ, instalado e construído na fazenda dos jesuítas, em Santa Cruz, zona oeste, subúrbio do Rio de Janeiro, teve sua construção iniciada no ano de 1876 e inauguração em 1881, por D.Pedro II e comitiva imperial. O imenso e novel complexo industrial para produção de “carne verde “ e abastecimento da cidade do Rio de Janeiro, o mais moderno do mundo, na época, modelo e referência para todo o Império, conforme queria D. Pedro II, possuía como plantas industriais do gênero, precedentes de produção de carnes, os seguintes matadouros:

a) Matadouro da Cidade do Rio de Janeiro ( Santa Luzia)

Construído a mando do 2º Marques do Lavradio, vice-rei do Brasil, em 1777, com o objetivo de centralizar o abate de gado no Rio de Janeiro e controlar o fornecimento e distribuição de carne à cidade, esse primeiro matadouro municipal, seguindo alguns modelos europeus e americanos, e principalmente os modelos dos matadouros de Portugal, foi erguido junto à praia de Santa Luzia, beira-mar, local estratégico, com finalidade de utilização da água do mar para as limpezas diversas de suas instalações, e o próprio mar, como destinação dos despejos de resíduos dos animais da matança. ( ERICHSEN, L. V. 2020 )

Mesmo com a limpeza e higiene das instalações, o sangue, fezes, urina e partes não aproveitáveis dos animais ( resíduos de matança ) derramados no meio ambiente e no mar causavam muita sujeira e odores fétidos pela decomposição orgânica dos subprodutos rejeitáveis, incomodando as pessoas, os moradores da localidade e os banhistas que frequentavam a praia.“ Ninguém queria morar perto de tanto sangue e imundices provocados pela morte dos animais, 145 a 150 bois diários, nos dias de semana e 300 bois nos fins de semana e feriados . “( CARLOS, H. 2018 )
Com a chegada da família real e sua corte em 1808, o Rio de Janeiro tornou-se a capital do império português com aumento substancial de sua população e transformações profundas na sua sociedade, economia, abastecimento de alimentos e estrutura urbana.

Com a chegada da família real e sua corte em 1808, o Rio de Janeiro tornou-se a capital do império português com aumento substancial de sua população e transformações profundas na sua sociedade, economia, abastecimento de alimentos e estrutura urbana.

Até a chegada da família real, a responsabilidade de fiscalização da matança do gado, do matadouro municipal, da distribuição de carne verde, considerada “ gênero de primeira necessidade “, no Rio de Janeiro, era monopólio do poder público, Alcaide-Mor, cujo gabinete administrativo ficava no mesmo prédio da Câmara Municipal, sendo esse assunto debatido frequentemente entre os vereadores e o Alcaide-Mor, seguindo a legislação das Ordenações Filipinas, sobre o assunto.

Em 1830, com a fundação da Nova Câmara e sob o título: “ Economia e asseios dos currais, matadouros e açougues públicos ou talhos “ a Câmara passou a instituir novas medidas sanitárias relativas aos matadouros, aos carniceiros, aos corpos dos bois e da carne proveniente desses para o consumo humano. Nesse sentido, o documento “ Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio “ do médico Manoel Vieira da Silva Borges e Abreu, nomeado por D. João provedor de saúde da Corte e Estado do Brasil, cuja função era: atentar às questões sanitárias relacionadas à prevenção e ao combate de epidemias, vigiar quarentenas, atender à salubridade urbana e o abastecimento alimentício, trouxe novas melhorias e inovações ao Código de Postura da cidade, podendo-se dizer, com segurança, que aí surgia, em Capítulos e Artigos, o embrião do atual Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal – RIISPOA ( 1952), do Brasil.

Após mais de 76 anos de serviços de ordem econômica, social e alimentar prestados à cidade do Rio de Janeiro, o matadouro de Sta Luzia foi desativado pelos seguintes motivos, discutidos e comentados: planta arquitetônica obsoleta e imprópria para o local instalado; poluição e contaminação das águas das praias da Gloria, Russel, Flamengo e Botafogo; incômodos com odores fétidos aos moradores e banhistas das praias; imundices ambientais provocadas pelas fezes, urina, sangue do gado abatido; pequeno para atender à demanda cada vez maior de carne verde aos açougues e casas de carne; atender ao Plano Urbanístico do Centro da cidade do Rio de Janeiro, planejado por D. João VI: construção de ruas e avenidas longas e largas, além do aterro de praias e pântanos, entre outras obras urbanísticas. ( ERICHSEN, L. V. 2020 )

b) Matadouro de São Cristóvão ( 1853 )

Matadouro de São Cristovão

Matadouro de São Cristovão

Da beira-mar para uma região pantanosa, terrenos da antiga Chácara do Curtume, São Cristóvão-RJ. A escolha do local deveu-se a uma longa discussão e debates entre a Câmara Municipal e os marchantes, fazendeiros, boiadeiros, atravessadores e comerciantes. Iniciado sua construção em 1845 e terminado em 1853, portanto oito anos de trabalhos intensos, essa demora foi devido às condições pantanosas dos terrenos escolhidos, longe do Centro Urbano. O projeto foi elaborado pelo engenheiro Paulo Barbosa da Silva e compreendia: duas casas para administração, dois currais de espera, dois pátios e quatro casas para abate: salas de matança (INEPAC).

Construído por marchantes e comerciantes de bois e alugado à Câmara Municipal do Rio de Janeiro com a finalidade de reparar os problemas sociais, sanitários, econômicos, tecnológicos e ambientais, causados pelo matadouro de Santa Luzia, principalmente, a poluição das praias e a demanda crescente de carne verde, insuficiente para atender a população, a nova planta de São Cristóvão, largo do Matadouro, atual praça da Bandeira, não atendeu aos objetivos colimados, notadamente, pela falta de água, invernadas para manutenção do gado e o monopólio do comércio da carne verde, problema comercial que se arrastava por longas décadas. ( ERICHSEN, L. V. 2020 ).

Do ponto de vista de saúde animal, higiene das instalações e inspeção do gado “ ante e post mortem “, o matadouro de São Cristóvão contribuiu com o primeiro Regulamento para as boas práticas de matança nos matadouros brasileiros, aprovado pela Câmara em 20 de julho de 1853, com 60 artigos, que visava sobretudo: a higiene, a matança e os cuidados com a carne verde, seus talhos e distribuição aos açougues e casas de carne das 21 Freguesias da cidade. O Novo Regulamento abandonava os fundamentos dos textos de 1830 e 1843, preconizados pelas Ordenações Filipinas em Portugal e determinava o modelo parisiense empregado no matadouro de La Villette-Paris.

Outra contribuição importante observada, durante os 28 anos de sua existência ( 1853-1881), foi a ausência de veterinários para a inspeção de saúde dos animais. Até aquela época, a inspeção era feita por médicos ou estudantes do 6º ano de medicina humana denominados “ médicos do matadouro “ ou “facultativos”. A imperiosa falta de médicos veterinários, conhecedores das verdadeiras causas das doenças animal e os motivos de rejeições de carcaças, após inspeções “post mortem”, principalmente as zoonoses, devia-se a ausência de uma Escola de Veterinária no Brasil, na Região Sudeste, até 1877 e o caso da perícia veterinária ser utilizada apenas no Exército, contratação de médico veterinário estrangeiro pelo governo imperial para estudar as doenças nos planteis de cavalo, no Rio Grande do Sul. ( ERICHSEN, L. V. 2020 ).

Oficialmente, a presença do médico veterinário em substituição ao médico humano em matadouros do Rio de Janeiro, foi solicitado, pela primeira vez, pelo Dr. Francisco de Paula Candido, presidente da Junta de Saúde Pública ao Sr. Ministro de Saúde do Império, em 1863, reforçando essa emergência veterinária de saúde pública já solicitada em 1854 por um estudante do 6º ano de medicina, e que também tinha formação veterinária, alertando que: “ a inspeção médica não serve apenas para ver se uma res era gorda, magra ou se depois de morta sua carne poderia ser consumida”.

Reprisando os mesmos erros cometidos pelo antigo matadouro de Santa Luzia, e agora pressionado pelo primeiro plano urbanístico da cidade, Plano Beauripaire-Rohan ( 1843), que previa o embelezamento da cidade, a drenagem dos pântanos e rede de esgotos, visto as frequentes epidemias de febre amarela e cólera, doenças miasmáticas originárias do mal cheiro do ar e das imundices causadas pelos resíduos de matança do matadouro, que assolava o Rio de Janeiro, bem como, um corredor viário que ligava a cidade velha à cidade nova, com ruas e avenidas longas, eixo que compreendia as Freguesias de São Cristóvão, Engenho Novo, Engenho Velho e Irajá, passando justamente pelo Largo do Matadouro, sua transferência teve aprovação pela 38ª Sessão da Assembleia da Câmara Municipal de 15 dez 1853, para o Campo de São José, Imperial Fazenda de Santa Cruz, subúrbio de Santa Cruz-RJ. ( COSTA,M.E. 2018 )

c) O Matadouro de Santa Cruz ( 1881-1980 ) 

Arquitetura Industrial & Natureza. Matadouro Imperial de Santa Cruz.

Santa Cruz, o matadouro público municipal, que em seus 100 anos de existência fez a transição do abastecimento e comércio da “carne verde” do Rio de Janeiro/ Império para o Rio de Janeiro/República e transformou a zona oeste da cidade.Não resta dúvidas que a planta arquitetônica do matadouro de Sta. Cruz, agora aprovada e aperfeiçoada, afastava os erros cometidos nos matadouros de Sta. Luzia e São Cristóvão e levava para Sta. Cruz a modernidade da maior Unidade Industrial de processamento de carne no Brasil que satisfazia à Câmara Municipal, à população e aos comerciantes, marchantes , distribuidores etc, assim, destacados conforme exigências do Imperador D. Pedro II.

– Localidade. Fazenda Imperial São José, freguesia de Sta. Cruz, zona Oeste da cidade, distante cerca de 60 km do Centro Urbano. Local amplo com abundância de água e grandes extensões de pastos para abrigar o gado, descansar e refazer-se das perdas orgânicas das longas caminhadas. Terreno alto, enxuto, arejado e salubre para facilitar o escoamento de resíduos e matérias impuras que possam acumular sujeiras por falta de nível suficiente para escoá-lo e provocar doenças miasmáticas. ( Exigências aprovadas para a construção do Novo Matadouro: Comissão da Câmara Municipal do Império, 1872 )

– Planta Arquitetônica. Foi elaborada e projetada fundamentada nos Regulamentos e Regimentos de funcionamento dos matadouros La Villette, Paris e do matadouro de Lisboa, Portugal, sendo considerada a mais moderna do mundo, na época. Coube ao engenheiro Augusto Teixeira Coimbra, sócio da Empresa Coimbra & Farani a execução desse Complexo Industrial que transformou sócio e economicamente a freguesia de Santa Cruz.
Frequentador assíduo das Exposições Universais ( World`s Fair ), eventos que aconteciam em diversas partes do mundo para apresentar avanços tecnológicos, descobertas e invenções, D. Pedro II queria levar para o matadouro de Santa Cruz todas as inovações e modernidades tecnológicas para seu bom funcionamento, aproveitamento de matéria-prima derivada do boi para a indústria e diminuir o esforço físico dos funcionários. Além disso, todas as modernas técnicas de higiene sanitária para a prevenção dos miasmas recorrentes das atividades do mesmo. ( COSTA,M.E. 2019 )

Esquema da planta original do Matadouro de Santa Cruz

Esquema da planta original do Matadouro de Santa Cruz

– Avanço Tecnológico. Abate humanizado. Uma das inovações tecnológicas introduzidas em Santa Cruz foi o processo de insensibilização dos animais. Foram substituídos os processos de marretada na cabeça utilizado em Santa Luzia, de “estylete” na cervical, em São Cristóvão, por choque elétrico em Santa Cruz. Este processo, mais eficiente e menos cruel, diminuía o sofrimento dos animais no abate e melhorava a qualidade da carne vendida para consumo da população.
Outras inovações tecnológicas foram: agitador automático no tanque de sangria para evitar a coagulação do sangue e seu aproveitamento na refinação do açúcar, preparação do azul da Prússia, tinturarias, carvão animal, plasma usado na fabricação de embutidos e soro para fabricar vacinas. O sangue desidratado era usado, também, na fabricação de ração animal, cola de madeira e outros serviços industriais. O sebo e a camada de gordura na fabricação de velas, sabão, sabonete, shampoo, cosméticos, fósforo, lápis e tintas. Todos esses resíduos da matança bovina, utilizados na indústria de derivados orgânicos, eram desperdiçados e desprezados no meio ambiente, por falta de tecnologia e maquinários, nos matadouros de Santa Luzia e São Cristóvão.

Laboratório de Bacteriologia – Matadouro de Santa Cruz. Foto Augusto Malta

Laboratório de Bacteriologia – Matadouro de Santa Cruz. Foto Augusto Malta

– Desenvolvimento Urbano. Até 1917, a província do Rio de Janeiro era dividida em 21 freguesias territoriais localizadas no Centro Urbano e Rural ( RIO, HISTÓRICO & FUNDIÁRIO). Santa Cruz, localizada na Zona Oeste e Rural, distante 60 km do Centro da cidade, era, depois de São Cristóvão, a mais desenvolvida, valorizada e prestigiada freguesia durante o Império, principalmente, por sediar a Estação de Veraneio, o Palácio Real e a Fazenda da aristocrata família Imperial. Mesmo antes da inauguração do Matadouro (1881), Santa Cruz prestigiada pelo rei D. João VI e Príncipes Regentes, D. Pedro I e D. Pedro II, já possuía Agência Fixa de Correios do Brasil, ( 1842), primeira linha telefônica do Rio de Janeiro para comunicar-se com o

Paço Real de São Cristóvão e Estação de Trem, inaugurada em 1878 ( DARGENTLEILOES.NET.BR ).
Por influência da construção e funcionamento do novo matadouro municipal no antigo Curato de Santa Cruz, houve a necessidade de se construir um ramal ferroviário para atender o transporte do gado e levar a carne para o centro do Rio, o que aconteceu em 1884. Também, o abastecimento de água para atender às atividades do matadouro e da população da localidade. Esse problema estrutural e relevante foi resolvido com a água canalizada, limpa e abundante, proveniente da Serra da Mendanha.
Vale ressaltar que durante o Império e os primeiros anos da República, Santa Cruz graças às intensas atividades econômicas, comerciais, industriais e sociais do matadouro, era a única freguesia do Rio de Janeiro que possuía transporte ferroviário, água encanada, luz elétrica e telefonia, fundamentais para o seu desenvolvimento ponderal industrial e socioeconômico.

Por *Dr. Edino Camoleze