O charque usualmente denominado carne seca, é um dos alimentos mais conhecidos e tradicionais do Brasil sendo apreciado em todas as regiões e em especial no Nordeste, por fazer parte de variadas preparações culinárias e muitas vezes confundido com produtos similares como a chamada carne de sol e o jerked beef. De acordo com a definição dada pelo Professor Elmo Rampini de Souza constitui-se em produto originário da carne bovina desossada, adelgaçada ou charqueada, salgada, maturada e dessecada.
Considerado um dos produtos de mais simples tecnologia, sua elaboração industrial começa pela desossa das peças de carne para a formação das mantas que são submetidas ao chamado charqueamento que consiste em cortes na superfície das carnes manteadas para facilitar a penetração do sal. A partir dai inicia-se a fase de salga úmida passando então as peças por uma salmoura com alta concentração de sal e em seguida para a de salga seca quando as mantas de carnes são colocadas umas sobre as outras, entremeadas por sal, formando as pilhas que periodicamente tem as posições das carnes e das próprias pilhas invertidas. O processamento é finalizado por uma dessecação ao sol em duas ou três etapas, tendo todo o processo tradicionalmente a duração de 21 dias.
A técnica de salgar a carne e dessecar ao sol, característica da produção do charque, surgiu no Brasil no inicio do século XVIII na região de Aracati, no Estado do Ceará, em função do clima propício e da proximidade com regiões produtores de sal, consistindo as denominadas charqueadas em estabelecimentos de abate de bovinos que destinavam toda a carne exclusivamente a fabricação do charque. Com o significativo aumento da produção esta região tornou-se de relevância na indústria nacional e nesta mesma época, com o inicio do ciclo do café, tornou-se produto estratégico a alimentar escravos, acrescido do consumo nas grandes cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, por ser barato e não necessitar de condições próprias de conservação.
A prosperidade das regiões de Aracati e Sobral foi interrompida em 1777 quando teve inicio uma seca severa, conhecida como a seca dos “Três 7” que perdurou até 1779, dizimando uma quantidade expressiva do rebanho bovino, diminuindo o volume de matéria prima, inviabilizando então a continuidade da produção de grande volume de charque.
Na região do hoje Estado do Rio Grande do Sul já existia um grande rebanho bovino, formado a partir dos animais trazidos pelos jesuítas que vieram da Europa, no século XVI, com a finalidade de catequizar os índios das tribos charruas, jês, guaranis e carijós que habitavam a região. Mais tarde ao invadirem as missões e escravizarem os índios, os bandeirantes abandonaram os animais que proliferaram por mais de um século sem qualquer controle.
Em 1780, um próspero produtor de charque da região de Aracati, de nome José Pinto Martins, soube da abundância do rebanho gaúcho e transferiu sua produção inicialmente para a região onde é hoje a cidade de Rio Grande que, entretanto, tinha uma característica de muito vento a levantar areia e impregnar a carne, motivo pelo qual rapidamente transferiu a produção para Freguesia de São Francisco de Paula, às margens do Canal de São Gonçalo, iniciando um excelente negócio.
Com o tempo, os estabelecimentos de produção de charque se multiplicaram e passaram a enviar o produto para outros estados e a exportar para a América Central, iniciando o chamado Ciclo do Charque. Como não existia qualquer controle sanitário no abate dos animais, as partes não aproveitadas eram abandonadas ao redor das charqueadas sem qualquer cuidado de forma que, ao se deteriorarem produziam mau cheiro atraindo insetos, roedores e aves de rapina, passando a região a ser conhecida por estas características e o canal de São Gonçalo como Rio Vermelho, tal era a quantidade de sangue e de restos de animais abatidos jogados em seu curso.
O charque pronto para comercialização era enrolado em mantas de couro denominadas pelotas e transportado pelos escravos com água até o pescoço através do canal imundo e vermelho, até o rio São Gonçalo onde era embarcado em embarcações maiores que não tinham condições para entrar no canal de São Gonçalo, em função dos restos de animais que o assoreava. A partir dai era transportado até Rio Grande e embarcado em grandes navios para Salvador, Rio de Janeiro e outras cidades. Escravos que apresentavam mau comportamento eram constantemente ameaçados de serem vendidos para as charqueadas o que os atemorizava em função da travessia do canal imundo e vermelho.
Em 1814 a metade da população da região era de escravos e os charqueadores enriqueciam rapidamente começando a ostentar elegantes palacetes, longe das produções é claro, para fugirem da podridão e do mau cheiro das charqueadas.
Em 1829, D. Pedro I autoriza a concessão do titulo de Barão do Charque e em 1935 a Freguesia de São Francisco de Paula é promovida a cidade com o nome de Cidade de Pelotas uma referência às pelotas utilizadas pelos escravos para o transporte do charque. Em 1860, as cidades de Rio Grande e de Pelotas já apresentavam forte expansão econômica e o dinheiro obtido pelos charqueadores começou a ser utilizado para a compra das maiores fazendas de café na região sudeste do Brasil.
Em 1888, com a Lei Áurea, que aboliu a escravatura, teve fim também o ciclo do charque no Rio Grande do Sul, em função da queda de consumo e a falta de mão de obra, independente de continuarem as produções no próprio Estado e em outras regiões do Brasil, passando o Estado de São Paulo a ser grande produtor.
A partir de 1940 as charqueadas começam a ser substituídas pelos matadouros industriais, agora com o principal objetivo de produzir carne diretamente para consumo, direcionando as partes de menor valor comercial, as menos nobres, como a denominada ponta de agulha, os dianteiros excedentes do consumo e as carcaças e partes de carcaças destinadas ao aproveitamento condicional por razões de ordem sanitária, para a produção de charque como até hoje acontece.
A par do tradicional charque, dois outros produtos similares, a carne de sol e o jerked beef, vêm ganhando espaço na aceitação pelo consumidor, independentemente de apresentarem algumas características singulares diferentes das do produto original.
Difundida no Nordeste que se espalhou por outras regiões, a carne de sol é um produto artesanal que se caracteriza por esfregar-se sal nas mantas de carne com posterior exposição ao sol por poucas horas, havendo uma forma alternativa que é mantê-las em local sombreado ao sabor dos ventos para a dessecação. Como esta forma de elaboração não permite uma dessecação tecnicamente adequada, ficando o produto com excesso de umidade, seu prazo de validade é curto, necessitando ser consumido rapidamente.
Já o jerked beef, processado industrialmente em condições tecnológicas que se assemelham ao charque, tem por característica apresentar comercialmente uma cor vermelha ou rósea, diferente da marrom do produto tradicional, conferida pela adição ao sal de um produto químico, o nitrato ou nitrito de sódio ou de potássio, que ao se combinar com a proteína que confere cor a carne, a mioglobina, dá origem a uma substância denominada nitrosomioglobina, responsável por uma cor vermelha brilhante.
Atualmente no comércio, principalmente das grandes cidades, dificilmente se encontra o produto charque tradicional, substituído pelo seu sucedâneo jerked beef em função de sua cor vermelha mais agradar ao consumidor leigo. Soma-se a isto, o fato de que o nitrato e nitrito, além de conferirem cor ao produto, também atuam inibindo a proliferação de microrganismos, permitindo que as fases tecnológicas de fabricação sejam abreviadas mantendo as mesmas condições de conservação. Ao abreviarem o tempo de processamento, em confronto com os 21 dias tradicionais, as indústrias abreviam a dessecação, objetivando um produto final com teor de umidade maior do que lhe seria próprio acarretando como consequência prejuízo ao consumidor que estará pagando o excesso de água ao preço de produto cárneo, associado a um maior ganho financeiro tanto para a indústria produtora quanto para o mercado varejista por igual motivo.