Historicamente, o consumo de leite animal por seres humanos teve origem no Oriente Médio, no período neolítico, fase evolutiva em que o homem pré-histórico abandonava a vida nômade para ingressar no sedentarismo, com a construção de choupanas, cultivo de alimentos vegetais e criação (domesticação) de animais, sendo a vaca o primeiro animal domesticado, seguido pela cabra, na mesma época, e a ovelha, aproximadamente 9 000 a 8 000 aC. Achados arqueológicos dessa longínqua era da pré-história mostra que as mulheres já amamentavam seus filhos com o leite oriundo dos animais e mamadeira feita de cerâmica com biquinhos, imitando o seio feminino humano para facilitar a amamentação. (Julie Dunne, Universidade de Bristol, Reino Unido)
Achados históricos mostram evidências da domesticação do gado, também na Mesopotâmia, 8 000 aC, inicialmente para fornecer carne e força. Quanto ao registro da produção de leite, pinturas rupestres datadas de 5 000 aC. encontradas em Dahara/Líbia, mostram vacas confinadas para produção de leite e fabricação de queijo. No Iraque, templo de Ninhursag, há uma historiografia datada de 3 100 aC., conhecida como “Friso dos Ordenhadores” que representa cenas típicas da produção de leite; como a ordenha, a coação e o fabrico de manteiga. (Leopoldo Costa, a Historia do Leite).
Embora o leite de vaca, cabra e ovelha fossem os leites mais consumidos durante a pré-história, na Idade Antiga (3 500 a.C – 476 d.C), há citações históricas do consumo e utilização do leite de égua. Assim, O historiador grego Heródoto (484 – 425 aC.), relatou a existência no Egito de um pão preparado com grãos de lótus misturados com leite e água que, quando comido quente, era leve e de fácil digestão; e a utilização, pelos Tártaros, de grande quantidade de leite de égua, que era consumido com gafanhotos, secos e moídos. Aristóteles (38 – 322 aC.) fez comentários sobre um laticínio de leite de égua que era fermentado para ganhar teor alcoólico (3%) e produzir uma bebida o ‘aira’, usada pelos Mongóis. Heródoto menciona também que os Citas já processavam o leite de égua. Este tipo de laticínio fluído , conhecido como ‘koumiss’, ‘kumis’ e outras variações, foi por longo tempo e ainda é um alimento importante para a dieta dos povos habitantes das estepes da Ásia, como os Tártaros. O leite de égua, por contar com maior conteúdo de lactose (40% a mais do que o leite de vaca) é ideal para fermentar e produzir a bebida alcoólica. A destilação do ‘koumiss’ produz o ‘araka’ ou ‘arkhi’1 que é uma espécie de aguardente. O leite “in natura” de égua não é muito consumido por provocar diarréia. Varrão, na sua obra ‘Agricultura’, escrita no século I, antes de Cristo, já comentava os poderes laxativos do leite de égua.
Durante a Antiguidade e a Idade Média, o leite era muito difícil de se conservar e portanto era consumido fresco ou em forma de queijo. Com o tempo, foram sendo desenvolvidos outros laticínios, como a manteiga, a coalhada e o leite fermentado.
A Revolução Industrial na Europa, por volta de 1830, trouxe a possibilidade de transportar o leite fresco de zonas rurais às grandes cidades, graças a melhorias no sistema de transportes. Com o tempo, apareceram novas tecnologias na indústria de processamento do leite. Uma das mais conhecidas foi o da pasteurização, criada em 1864 por Louis Pasteur e depois sugerida para ser usada no leite em 1886, pelo químico microbiologista alemão Franz von Soxhlet.
Estas inovações tecnológicas permitiram que o leite ganhasse um aspecto mais saudável, tempo de conservação mais duradouro e processamento mais higiênico. (Wikipedia).
O consumo de leite no Brasil
No Brasil, a origem do leite para consumo humano e utilização na indústria, está relacionada com a introdução do gado europeu por Martin Afonso de Souza, (32 cabeças, em 1532), na Capitania de São Vicente-SP, durante o período colonial. Mas, até meados do século XX, o consumo de leite teve caráter secundário, com poucas vacas criadas e mantidas para esse fim, e a pequena oferta do produto impediu que sua ingestão se tornasse um hábito popular na dieta alimentar da sociedade brasileira.
Do início da introdução até século XX, o leite consumido no Brasil não tinha nenhum tipo de tratamento, o que poderia veicular uma série de doenças à população. O transporte do leite, que antes da Abolição era feito por escravos, em latão, passou a ser feito por vaqueiros, em carroças, que o produziam nas periferias das cidades, em geral em condições insatisfatórias de higiene e qualidade. Essa situação confrontava as teses da recém-surgida ciência da nutrição, para a qual o leite era um alimento fundamental para a saúde e o bem-estar das pessoas.
Em 1918, o bioquímico americano e pioneiro da vitaminologia Elmer Verner McCollum havia declarado o leite de vaca o mais importante dos “alimentos protetores”, que não devia faltar na nutrição cotidiana de crianças e adultos. Segundo McCollum, citado por Brinkmann, devido ao seu extraordinário conteúdo de sais minerais, vitaminas e proteínas de alto valor, não existia alimento melhor do que o leite para corrigir as deficiências nutritivas da alimentação habitual. Seguindo o caminho aberto pelo americano, na década de 1920, as novas hipóteses sobre o valor sanitário do leite de vaca conquistaram os círculos médicos e nutricionistas de praticamente todos os países ocidentais, gerando uma verdadeira “ideologia do leite” que, por sua vez, daria nova orientação não só às políticas de nutrição, mas também ao fomento da agropecuária.
No Brasil, o principal seguidor de McCollun foi o médico pernambucano Dr. Josué de Castro, pioneiro da ciência de nutrição no país, que com base em pesquisas sanitárias em quinhentas famílias de três bairros proletários de Recife, revelou padrão alimentar bastante baixo e pobre, consistindo, antes de mais nada, da tradicional tríade charque, mandioca e feijão, que em praticamente todos os casos era insuficiente para satisfazer as necessidades calóricas individuais, de adultos e crianças, sem considerar o fornecimento necessário de vitaminas, proteínas e minerais, todos esses componentes alimentares, encontrados no leite. Recomendou o renomado cientista nutricionista, ao governo pernambucano, a inclusão do leite na dieta alimentar diária da população, mudando tradicionalmente o hábito alimentar dos pernambucanos. (Castro, 1936. p.102-104).
Rio de Janeiro, a capital pioneira do consumo de leite no Brasil
A propaganda do alimento, no começo dos anos 1930, apesar dos esforços do prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, que promoveu a Primeira Semana do Leite, no Rio, para aumentar o consumo do produto, recomendado pela ONU/FAO, que era: 500ml por adulto e de 1000ml /dia para criança até 14 anos, ocultava o fato de que a maioria das grandes cidades do país, incluindo a capital federal, não dispunha de oferta comercial de leite fresco apropriada para cumprir a exigência dos nutricionistas de ampliar a ingestão diária.
Em 1935, o leite consumido na capital federal provinha de duas fontes, segundo Brinkmann: cerca de 15% da oferta era do produto cru, produzido nos estábulos da cidade sob precárias condições higiênicas, o que há anos vinha provocando violentos protestos por parte de médicos e pediatras, que consideravam o “leite do vaqueiro”, comercializado a granel, um perigo para a saúde pública e pediam pela imediata proibição desse comércio ambulante e fechamento desses estabelecimentos de produção. O restante da oferta comercial compunha-se de leite pasteurizado vindo por vias férreas de distintas zonas pecuárias no interior dos estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, a maior parte de qualidade deficiente. O alimento era transportado em precárias condições, pois as companhias ferroviárias não dispunham de vagões frigoríficos para o adequado armazenamento. Além da baixa qualidade, o leite era um produto caro para a maior parte da população carioca.
A industrialização do leite
Não resta dúvidas que a pasteurização dos alimentos líquidos, invenção tecnológica industrial feita pelo cientista francês Louis Pasteur (1864), foi um passo gigantesco para a industrialização e conservação dos alimentos. A partir dessa data e aperfeiçoamento do método de pasteurização aplicado ao leite feita por Franz Von Soxhlet, químico agrícola alemão, especialista em laticínios – a eliminação e controle de bactérias indesejáveis do leite e derivados – possibilitou a comercialização sanitizada do produto, maior tempo de conservação e prevenção na transmissão de doenças.
A indústria de laticínios no país teve início em Barbacena-MG, no ano de 1888, com a inauguração da Fábrica de Laticínios “Mantiqueira” de propriedade do fazendeiro Dr. Carlos Pereira de Sá Fortes, pioneira no Brasil e da América do Sul, na fabricação de queijos e manteiga, com importação de maquinários e tecnologia holandesa. Na esteira dessa iniciativa, ainda no Império, seguiu-se, na República, a implantação do Parque Industrial de Laticínios do Brasil com empresas multinacionais, tecnologia europeia e americana, assim disseminado nos principais centros consumidores do país: Vigor S/A, leite e laticínios, inaugurada em 1917, capital mexicano, em São Paulo; Mococa S/A, Produtos Alimentícios, empresa brasileira, fundada em 1919, cidade de Mococa-SP, produção do leite e manteiga; Nestlé S/A, leite e laticínios, capital suíço, inaugurada na cidade de Araras -SP, 1921, primeira empresa a produzir o leite condensado no Brasil; Batavo S/A, produtos lácteos, capital francês, inaugurada em Carambeí-PR, 1928; Cooperativa de Produtores de Leite-CCPL, empresa brasileira, atividade laticínios, fundada em 1946, na cidade de São Gonçalo-RJ, primeira empresa a produzir o leite “longa vida” e Itambé S/A, atividade laticínios, capital francês, fundada em 1948, em Belo Horizonte-MG.
O leite no Estado Novo (Era Vargas)
No primeiro governo de Vargas, período de (1930-1945), a produção leiteira do país era pequena; não atendia a demanda da população; o rebanho de vacas não era especializado; o leite não tinha qualidade e não sofria inspeção sanitária; causando prejuízos sanitários e doenças aos consumidores. Para melhorar e modernizar o Sistema de Abastecimento de Leite, o governo federal, em 1940, assinou decreto estabelecendo a chamada Comissão Executiva do Leite-CEL, com a grande tarefa de: nacionalizar todas as empresas de lacticínios que abasteciam a capital e a organização em cooperativas de produção dos aproximadamente dois mil produtores nas zonas leiteiras dos estados de Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os objetivos dessas medidas eram, por um lado, transformar os fazendeiros em produtores de leite profissionais, aumentando assim a produtividade, e, por outro, garantir participação “mais justa” dos produtores nos rendimentos do negócio mediante a exclusão do comerciante intermediário. O objetivo final da Comissão seria a transferência da responsabilidade de todo o sistema de abastecimento de leite para as mãos das cooperativas leiteiras, reunidas sob a direção de uma organização de cúpula – a chamada Cooperativa Central – com sede na capital.
No segundo período do governo Vargas, período de (1951-1954) o leite continuou merecendo atenção especial do governo, e, em março de 1952, segundo o Decreto nº 30.691, que aprovou o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal, RISPOA, o leite mereceu um Capítulo Especial, (Capítulo II) onde os estabelecimentos foram classificados em I – Produtoras; 2 – Postos de Leite e Derivados e 3 – Estabelecimento Industriais. Também de acordo com sua origem, o leite foi classificado em tipo “A”, os procedentes de Granjas Leiteiras, pasteurizados, refrigerados e engarrafados para consumo ” in natura “; tipo B, os oriundos “estábulos leiteiros”, assim denominado o estabelecimento localizado em zona rural ou suburbana, de preferência destinado à produção e refrigeração de leite para consumo em ” in natura ” e o tipo C, os procedentes de – “fazenda leiteira”, assim denominado o estabelecimento localizado, via de regra, em zona rural, destinado à produção de leite para consumo ” in natura” e para fins industriais.
O novo marco regulatório organizou, disciplinou e qualificou a produção, distribuição e comercialização do leite e derivados, sob inspeção federal, Decreto de 1952; deu novo impulso a produção de leite e laticínios no Brasil, pareando o país com as grandes potências mundiais produtoras de alimentos e produtos lácteos, que é hoje.
* Dr. Edino Camoleze, Cel med vet mil – Planejamento & Tec. Alm; Zoogeografia da América do Sul. Acadêmico Titular da ABRAMVET. End edino0644@gmail.com.