Por Carlos Alberto Magioli, Médico Veterinário

A alimentação adequada é direito fundamental inerente à dignidade humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, cabendo ao poder público adotar ações que promovam e garantam a segurança alimentar e nutricional da população.

O termo Segurança Alimentar, da expressão em inglês Food Security, constitui o direito de todo cidadão ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades essenciais, já a expressão “Segurança dos alimentos”, do inglês Food Safety, refere-se a garantia da qualidade dos alimentos desde a produção, processamento industrial e comercialização até que cheguem ao consumo, constituindo-se em produtos saudáveis sem a presença de contaminantes sejam físicos, químicos ou microbiológicos que possam afetar a saúde ou a integridade física do consumidor.

Histórico

O primeiro uso do conceito Segurança Alimentar e Nutricional – SAN ocorreu no período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), na Europa, utilizado considerando a capacidade de cada país produzir alimentos seguros em qualidade e em quantidade suficientes para a sua população e para as tropas em litígio, de forma a não depender de outros países, pois com o conflito, ficava evidente que um país poderia ser dominado ou dominar o outro considerando o poder de controlar a produção e o abastecimento de alimentos.

Entretanto o controle dos alimentos produzidos se desenvolvia de forma empírica com as análises laboratoriais para avaliação da qualidade físico, química e microbiológica, feitas com técnicas pouco precisas e somente no produto depois de pronto e embalado, produto final, levando a possibilidade de perdas econômicas caso as analises não conferissem os padrões de qualidade exigidos levando muitas vezes a rejeição de toda uma produção ou de um lote.

Na década de 1960, com a intensificação das viagens espaciais houve a necessidade de um controle maior, principalmente da inocuidade dos alimentos levados nas capsulas espaciais para alimentação dos astronautas, que não poderiam estar sujeitos a transtornos gastrointestinais no espaço, o que seria um sério problema a ser enfrentado, por não haver a possibilidade de retorno a qualquer momento.

Então a National Aeronautics and Space Administration (NASA), em colaboração com a empresa Pillsbury Company e os Laboratórios do Exército dos Estados Unidos, estudaram uma forma de garantir a inocuidade desses alimentos através do chamado sistema HACCP, Hazard Analysis and Critical Control Points, ou Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle, método embasado na aplicação de princípios técnicos e científicos de planejamento, controle e registro em cada uma das fazes de produção, de forma a garantir a segurança do alimento para consumo inicialmente dos astronautas e depois expandido para os consumidores em geral.

Nas décadas de 1980 e 1990 em função de graves incidentes de contaminações de alimentos, este programa foi expandido pelo Serviço de Segurança e Inspeção Alimentar, Food Safety and Inspection Service (FSIS), do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos da América (USDA) associado ao Programa de Redução de Patógenos, em virtude dos consumidores europeus e americanos, passarem a atribuir maior importância a qualidade e segurança dos alimentos, com o principal efeito repercutindo nos órgãos oficiais e nas empresas produtoras que passaram a investir em métodos e sistemas voltados para a garantia de alimentos sanitariamente seguros.

No ano de 1996 o Governo dos Estados Unidos da América, a partir do surgimento de surtos de Doença transmitida por alimento causada pela bactéria Escherichia coli O157:H7 atribuída a hambúrgueres servidos em restaurantes tipo “fast food”, publicou mudanças profundas na sua legislação de inspeção de carnes bovina e de aves voltada para questões higiênicas e sanitárias, para redução de patógenos e sistema de análise de perigo e pontos críticos de controle, APPCC.

Essas mudanças tiveram como base o fato de que o sistema tradicional de inspeção, eficiente para detecção de patologias dos animais de abate como tuberculose, cisticercose, brucelose e outras, não oferecia as mesmas garantias em relação a contaminação das carnes nas diversas etapas de preparação, com consequentes possibilidades do surgimento de Doenças Transmitidas por Alimentos, DTA, antigamente conhecida por toxinfecções alimentares, causadas por microrganismos emergentes, Escherichia coli, Campilobacter jejuni, Clostridium perfringens, Estafilococcus aureus e outros, justificando assim a introdução do novo Sistema de controle.

Aquele novo Sistema introduziu significativa modificação destacando a responsabilização das empresas e não mais apenas do órgão fiscalizador, na manutenção dos padrões de higiene, necessários a garantia da produção de alimentos seguros, passando a ser extensiva a todas as indústrias estrangeiras exportadoras para os Estados Unidos, incluindo as do Brasil.

Assim, a partir de 27 de janeiro de 1997 todos os estabelecimentos brasileiros exportadores para os Estados Unidos deveriam implantar o programa preparatório, “Procedimento Padrão de Higiene Operacional com a sigla PPHO”, destinado a prevenir contaminação de seus produtos bem como adulterações, considerado como uma prévia para implantação mais tarde do programa de  Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle, que consistia na descrição de todos os procedimentos a serem efetuados antes e durante as operações industriais, devendo constar o desenvolvimento do PPHO, a implantação, a manutenção, as ações corretivas e os registros como início de outras ações que viriam em consequência, para a modernização e eficiência do controle de alimentos de origem animal no Brasil.

 

Programa Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle APPCC

Constituiu o marco para profundas mudanças nos critérios de inspeção de produtos de origem animal no Brasil, servindo também como ensaio para a implantação em âmbito nacional do sistema de inspeção baseado em controle de processos, modernizando o sistema e conferindo a responsabilidade sobre a qualidade do produto a quem de fato o produzia, o estabelecimento industrial.

No ano de 1998 o então Ministério da Agricultura e Abastecimento considerando a necessidade de adequação das atividades da fiscalização aos novos procedimentos adotados pelas indústria no controle higiênico-sanitário das matérias-primas e dos produtos de origem animal e ainda, a necessidade de atendimento aos compromissos internacionais assumidos no âmbito da Organização Mundial de Comércio, disposições do Codex Alimentarius, assim como do Mercosul, instituiu  o Sistema de Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle, APPCC a ser implantado, gradativamente nas indústrias de produtos de origem animal, o que mais tarde viria a se constituir em um segmento do programa de autocontrole obrigatório para todas aquelas empresas elaboradoras.

A Responsabilização do Fabricante

Autocontrole é a capacidade do agente agropecuário em executar, monitorar, verificar e corrigir seus procedimentos e processos, visando garantir a idoneidade dos insumos e serviços, a identidade, a qualidade, a sanidade, a saúde e a segurança higiênico sanitária e tecnológica dos produtos agropecuários.

São procedimentos descritos, desenvolvidos, implantados, monitorados e verificados pelo próprio estabelecimento produtor, com vistas a assegurar a inocuidade, a identidade, a qualidade e a integridade dos seus produtos, sendo portanto, um avanço na responsabilização da empresa produtora pelo produto que elabora e em atendimento a Política Nacional das Relações de Consumo que objetiva o atendimento das necessidades dos consumidores, com respeito à sua dignidade, saúde e segurança.

Assim as legislações passaram a considerar a responsabilização dos fabricantes pela qualidade do produto elaborado e inserindo, dentre os procedimentos, a implantação e execução por parte da indústria dos chamados programas de autocontrole, conceituados como macroprocesso composto de vários processos agrupados basicamente em quatro grandes categorias: matéria-prima, instalações e equipamentos, pessoal e metodologia de produção, todos eles direta ou indiretamente envolvidos na qualidade higiênico-sanitária do produto final.

As quatro grandes categorias são então subdivididas em sub categorias:  (1) Manutenção das instalações e equipamentos industriais; (2) os Vestiários e sanitário; (3) Iluminação; (4) Ventilação; (5) Água de abastecimento; (6) Águas residuais; (7) Controle integrado de pragas; (8) Limpeza e sanitização (PPHO); (9) Higiene, hábitos higiênicos e saúde dos operários; (10) Procedimentos Sanitários das Operações; (11) Controle da matéria-prima, ingredientes e material de embalagem; (12) Controle de temperaturas; (13) Calibração e aferição de instrumentos de controle de processo; (14) APPCC –  Programa de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle; (15), além dos testes microbiológicos e (16) Certificação dos produtos exportados.

No período de 2010 a 2015 as empresas produtoras intensificaram os atendimentos as exigências oficiais formuladas no sentido do desenvolvimento e implementação dos Programas de Autocontrole, com obrigatoriedade de elaborarem, implantarem, monitorarem e verificarem os seus programas, vindo a se constituir no elo para a transferência para elas de parte das atribuições legais da fiscalização oficial.

Lei do Autocontrole

Para cumprimento destas atribuições, a lei 14.515 instituída em 29 de dezembro de 2022 denominada lei do autocontrole que dispôs sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária, atribui ao fabricante a garantia de que seus produtos e serviços atendam aos requisitos de inocuidade, de identidade, de qualidade e de segurança estabelecidos na legislação, a ratificar portanto, a responsabilidade da garantia do alimento a quem de fato o produz, durante toda a cadeia do campo a mesa.

Para o cumprimento da finalidade os estabelecimentos industriais privados se obrigam a garantir a implantação, manutenção, monitoramento e verificação dos programas de autocontrole através de registros sistematizados e auditáveis dos processos produtivos desde a obtenção e recepção da matéria-prima, dos ingredientes e dos insumos até a expedição e comercialização do produto final, com a descrição dos procedimentos de autocorreção em caso de desvios, incluindo ainda previsão de recolhimentos, recall, em qualquer etapa de distribuição, armazenamento e comercialização, de lotes que apresentarem deficiências, não conformidades, que possam causar riscos à segurança dos consumidores.

Direitos do Consumidor

Ao reconhecer a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e, considerar como seu direito a proteção a vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos considerados perigosos ou nocivos, o legislador passa a atribuir a qualidade nutricional e principalmente sanitária dos alimentos a responsabilização do estabelecimento industrial que o elabora, remetendo a que este não poderá colocar no mercado de consumo produto que sabe ou deveria saber, apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade.

Uma relação de consumo própria de uma sociedade moderna e justa para todos requer, como fundamento, que a empresa produtora do alimento tenha a perfeita convicção de ser a responsável por aquilo que fabrica e coloca a comercialização, e que o consumidor detenha o conhecimento dos seus direitos a exigir que o que lhe é oferecido tenha a qualidade nutricional e sanitária que dele espera.

Entretanto a responsabilidade da empresa produtora e o conhecimento adequado do consumidor, não eximem os órgãos oficiais de fiscalização da sua atribuição de zelar pela qualidade física, química e sanitária daquilo que é produzido e comercializado, chancelando os alimentos próprios para o consumo e punindo com rigor as empresas que não cumprirem os ditames das boas práticas de fabricação, ao oferecerem produtos que remetam a desvios técnicos, sanitários ou mesmo econômicos a ludibriar o consumidor.

Os Serviços Oficiais de inspeção e fiscalização representam a segurança para o consumidor da idoneidade do fabricante em garantir a qualidade daquilo que coloca no mercado de consumo, uma vez que, produzir alimentos não é para quem pretende mas para quem tem as condições higiênicas, tecnológicas e principalmente sanitárias para fazê-lo, seja um grande, médio ou pequeno produtor.

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