Por Carlos Alberto Magioli, Médico Veterinário
Segundo a FAO, a insegurança alimentar severa é quando a pessoa está de fato sem acesso a alimentos, e passa um dia inteiro ou mais sem comer. Representa a fome concreta que se mantida regularmente leva a prejuízos graves à saúde física e mental, sobretudo na primeira infância, no desenvolvimento e na formação cognitiva.
De acordo com o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI) publicado em 24 de julho de 2024, cerca de 733 milhões de pessoas passaram fome no mundo em 2023 o que equivaleu a 1 em cada 11 pessoas e 1 em cada 5 na África. O Relatório adverte que o mundo está falhando gravemente em alcançar o objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) 2, fome zero até 2030 e que se as tendências atuais continuarem, cerca de 582 milhões de pessoas estarão subnutridas em 2030.
Em contrapartida o Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), publicado em 27 de março de 2024 alerta que o desperdício de alimentos continua a prejudicar a economia global e fomentar a mudança climática e a poluição. Domicílios de todos os continentes desperdiçaram mais de 1 bilhão de refeições por dia em 2022, diferindo nos níveis médios observados para países de renda alta, média-alta e média-baixa em apenas 7 kg per capita.
Paradoxo: fome e desperdício
O que se apresenta como um paradoxo entre a fome e o desperdício de alimentos, tem as suas origens fatores diversos como capacidade de produção, dificuldade das pessoas em os adquirir, questões climáticas como secas e inundações, guerras, conflitos civis principalmente em países africanos, pobreza, desigualdade social, desperdício por má conservação ou por perda do prazo de validade, este último ocorrendo no varejo e nas residências, associado ao comportamento do consumidor.
Prazo de validade
Para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ANVISA, o prazo de validade é o intervalo de tempo no qual o alimento permanece seguro e adequado para consumo, desde que armazenado de acordo com as condições estabelecidas pelo fabricante.
O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/1990 define como produtos impróprios para consumo aqueles deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos, os em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação os que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim a que se destinam e aqueles cujos prazos de validade estejam vencidos.
Já o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal considera impróprios para o consumo as matérias-primas ou os produtos de origem animal que, dentre outros, se apresentem alterados, fraudados, adulterados, danificados, que contenham substâncias ou contaminantes que possam prejudicar a saúde do consumidor, contenham substâncias tóxicas ou compostos radioativos em níveis acima dos limites permitidos em legislação específica, que contenham microrganismos patogênicos em níveis acima dos limites permitidos, revelem-se inadequados aos fins a que se destinam, apresentem embalagens estufadas, defeituosas ou que estejam com o prazo de validade expirado.
Então é lícito considerar que todo produto cujo prazo de validade expirou está impróprio para consumo podendo levar algum tipo de agravo a saúde de quem o vai consumir? Pela legislação está demonstrado que sim, entretanto a luz da ciência dos alimentos esta afirmativa pode carecer de questões complementares.
Em contraponto, todo produto dentro de seu prazo de validade está próprio para o consumo? Pela legislação está, entretanto muitos fatores associados a ele, os chamados intrínsecos ou de sua própria composição como matéria prima e aditivos, umidade, tipo de produto se sólido ou líquido, acidez ou alcalinidade e outros, e os correspondentes ao ambiente de armazenagem ou comercialização, os chamados fatores extrínsecos como tipo de embalagem, temperatura, umidade ambiente, iluminação, condições de manipulação e outros, podem levar a que ele perca as suas qualidades nutritivas e sensoriais estando ainda dentro do prazo estipulado pelo fabricante como de validade.
Por certo o fabricante ao determinar o prazo de validade de cada um de seus produtos leva em consideração todos estes fatores, intrínsecos e extrínsecos e os certifica somente se todos eles forem atendidos, o que muitas vezes não se tem como assegurar durante toda a cadeia da distribuição, a comercialização até a mesa do consumidor.
Qualidade do alimento
É relevante abordar que o prazo de validade tem como objetivo ser um referencial para o consumidor, informando a ele se o que está comprando mantém a qualidade nutritiva, de sabor, aspecto e outras características sensoriais que dele se espera. Não há como o consumidor que muitas vezes não é educado sobre qualidade de alimentos, utilizar no momento de sua aquisição, outro parâmetro de avaliação que não seja o prazo de validade, principalmente para aqueles produtos que não permitem a visualização através da embalagem.
Em contrapartida ao considerarmos os conhecimentos científicos também não se pode afirmar que um alimento que teve o seu prazo de vida comercial vencido esteja certificadamente impróprio para o consumo, até porque, as empresas ao definirem o chamado tempo de prateleira trabalham sempre com uma margem de segurança, para se resguardarem em casos de dúvidas que possam surgir na comercialização.
Não se trata aqui de injuriar a legislação que considera que um alimento que teve esgotado o prazo de validade está impróprio para o consumo, pois de fato e a luz do direito está. Entretanto cabe como reflexão com foco na fome no mundo e no desperdício de alimentos, considerar que a validade tem relação direta com os processos tecnológicos de elaboração praticados por cada fabricante incluindo os critérios de conservação, distribuição e utilização, podendo levar a que produtos semelhantes em composição e classificação tenham prazos de validade diferentes, uma vez que, a determinação deste prazo está a critério do fabricante, por não existirem recomendações ou normas oficiais definindo esses parâmetros.
A este respeito o Decreto 986/69, Normas Básicas Sobre Alimentos, respalda a possibilidade de aproveitamento de muitos alimentos não perfeitamente aptos ao consumo, quando prevê que alimentos corrompidos, adulterados, falsificados, alterados ou avariados que forem fabricados, vendidos, expostos à venda, depositados para a venda ou de qualquer forma entregues ao consumo, não terão a inutilização efetuada quando, através análise de laboratório oficial, ficar constatado não estar impróprio para o consumo imediato, podendo, após sua interdição, ser distribuído às instituições públicas, ou privadas, desde que beneficentes, de caridade ou filantrópicas. Quantos deles já foram aproveitados no Brasil desde 1969 e quantas pessoas se alimentaram deles saciando a sua fome?
Dados da Associação Brasileira de Supermercados, ABRAS, dão conta que no ano de 2019 o maior percentual de perdas foi por prazo de validade vencido, correspondendo a 36,9% deste total aos produtos perecíveis e 39,9% aos não perecíveis. No ano de 2020 as perdas totais incluindo as por prazo de validade vencido, representaram sete bilhões e seiscentos milhões de reais, ou 1,79% do faturamento bruto.
Determinação do prazo de validade
Conforme já demonstrado, a determinação do prazo de validade de qualquer produto seja alimento ou não, é critério definido por cada fabricante dentro do seu processo tecnológico de elaboração levando em consideração, no caso dos alimentos, a sua qualidade nutricional e principalmente os aspectos de ordem sanitária, microbiológicos, de forma a que o produto tenha as condições nutritivas que dele se espera e que não venha representar agravo a saúde do consumidor no período determinado, desde que submetido as condições previstas pelo produtor.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) em alguns países, como Holanda, Alemanha, Reino Unido, Canadá e Portugal, para o prazo de validade o modelo adotado é conhecido como Best Before (melhor antes, em tradução livre do inglês) e consiste, na maioria dos casos, na utilização de duas datas. A primeira, conhecida como Best Before indica até quando o alimento está em sua melhor performance considerando os parâmetros segurança, composição e performance sensorial e a segunda data, definida como Use By (válido até) considera apenas o critério de segurança ou inocuidade. Ou seja, entre os prazos Best Before e Use By, o alimento estará seguro para o consumo, mas pode não ser mais tão saboroso e nutritivo.
Na Holanda e Alemanha, houve redução nos índices de desperdício e de melhoria nos fluxos de produtos dentro dos supermercados, com os produtos Use By ganhando uma seção separada ou até mesmo uma loja específica e geralmente vendidos por menores preços.
A legislação americana não determina que as empresas coloquem no rótulo dos alimentos os prazos de validade, exceto para composição de alimentação infantil, entretanto muitas industrias utilizam como parâmetros para orientação ao consumidor, as expressões Sell by: que é a data de referência para comercialização, Best by, Best if used by, Best before, data em que o produto não estará tão fresco como quanto antes dela e Use by: a data referente à segurança do alimento. Apesar destas orientações a agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos da América afirma que a confusão dos consumidores em relação a etiquetagem das datas é provavelmente responsável por cerca de 20% dos desperdícios nas casas, custando cerca de 161 milhões de dólares ao ano.
As embalagens inteligentes
Por certo que ao considerar apenas a data de validade como parâmetro para a propriedade ou impropriedade de um alimento para consumo, se está diante de uma condição que pode conduzir a desperdícios de produtos prontos ou de matérias primas nobres, associados em consequência e como já foi descrito, a escassez de alimentação para muitas pessoas. Entretanto a ciência já desenvolve formas para que o consumidor possa visualmente identificar se o que deseja adquirir apresenta ainda condições para consumo e dentre estes identificadores estão as chamadas embalagens inteligentes.
No artigo Embalagens Inteligentes para Alimentos Perecíveis, Boletim de Tecnologia e Desenvolvimento de Embalagens volume 27 nº 3, Instituto de Tecnologia de Alimentos, ITAL, as autoras Claire Sarantopoulus e Luiza Sartori Cofcewicz, abordam que as embalagens inteligentes monitoram e comunicam informações sobre o conteúdo e o ambiente ao redor de um produto para o consumidor, através de acessórios incorporados ao material de embalagem do perecível na forma de etiqueta ou rótulo que, através de mudanças de cores ou outros indicativos, servem de alerta sobre tempo – temperatura, indicadores de frescor, de maturação, indicadores e sensores de gases, de umidade, de microrganismos, tempo de uso, odor, sistema anti violação e outros, que podem ser complementares ao prazo de validade.
Por certo, esta nova tecnologia que ainda não tem o seu uso incorporado pelos fabricantes, pelo menos em nosso país, tem um custo financeiro agregado ao preço final do produto e além disso a sua implementação exige que o consumidor seja educado para identificar os indicadores e saber os interpretar, de forma a conduzir para a sua aceitação e confiabilidade.
Influência da data de validade nas decisões de consumo
No artigo Influência da data de validade nas decisões de compra e consumo de produtos alimentícios, que teve como objetivo investigar o nível de conhecimento do consumidor sobre questões relativas à data de validade dos alimentos e sua relação com o comportamento de compra e consumo, os autores Flávio Bressan e Geraldo Luciano Toledo, obtiveram como resultado que os dados do levantamento são indicativos de que pode não haver correlação entre o conhecimento sobre conservação de alimentos e a conferência da data de validade na compra e consumo. Que o conhecimento sobre a data de validade influencia o consumo, mas não influencia o consumo daqueles com data de validade vencida, pois para muitos dos entrevistados a data de validade não é considerada relevante e eles parecem dar mais atenção às suas experiências, como aparência do alimento, para a tomada de decisão. Desta forma concluíram que os resultados encontrados apontam na direção da necessidade de as agências governamentais e empresas desenvolverem e implementarem programas educacionais que objetivem informar, esclarecer dúvidas e mudar equívocos, orientar as decisões na compra e consumo de alimentos, principalmente no que se refere a data de validade não ser considerada relevante se valendo o consumidor mais da aparência dos alimentos do que dos riscos que validade vencida possa indicar para a tomada desta decisão.
Assim, apesar de não ser o objetivo deste artigo fazer apologia ao não cumprimento da legislação que determina que alimentos fora do prazo de validade estão impróprios para consumo, oportuniza reflexão sobre como diminuir os desperdícios em prol da possibilidade de que um maior número de pessoas possam ter acesso a alimentos que eventualmente, mesmo não tendo todos os requisitos de qualidade esperados, continuam aptos ao consumo principalmente sob o aspecto sanitário, levando também a um viés de ordem econômica, pela possibilidade de seu melhor aproveitamento repercutir em menores preços para comercialização e consequentemente para o consumidor.