A aprovação, pela União Europeia, de uma nova legislação que exige dos exportadores de commodities agrícolas à região que provem que seus produtos não são provenientes de área desmatada, é o mais novo percalço para o setor pecuário mundial. Para o Brasil, que é o maior exportador de carne bovina e de frango do mundo, é um fator de preocupação e vai exigir mais investimentos das companhias.

Os maiores grupos do país já têm avançado em práticas de sustentabilidade e rastreabilidade da cadeia, mas o mercado internacional constantemente levanta dúvidas sobre o nível de profundidade e comprometimento. A pressão vem não apenas de compradores e legisladores, mas também de investidores, clientes e organizações do terceiro setor.

As críticas giram em torno das emissões de gases de efeito estufa (GEE), seja diretamente, pela fermentação entérica do gado e manejo de dejetos de animais, ou indiretamente – desmatamento ilegal para criação de gado.

No primeiro caso, sozinha, a pecuária é responsável por cerca de 19% dos GEE emitidos em 2021, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG). No segundo, é mais difícil relacionar o impacto. No ano passado, só o desmatamento na Amazônia respondeu por 38%, a grande parte ilegal.

Problemática

O Prática ESG ouviu dois especialistas no tema para entender a problemática da pecuária e traçar soluções. Para Pedro de Camargo Neto, pecuarista, ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e um dos principais especialistas no setor no país, a pecuária não pode ser responsabilizada pelos desmatamentos.

“Para o pecuarista a expressão ‘passar a boiada’ é trocar o gado de um pasto para outro e não atropelar o processo legal”, disse. Em sua opinião, o desmatamento é o resultado de uma série de fatores, que envolve garimpo ilegal, extração madeireira ilegal, grilagem de terras públicas e omissão dos poderes públicos no combate à criminalidade.

Já para a atual presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e membro do Conselho Consultivo da Amazônia, Teresa Vendramini, a regularização fundiária é primordial para avançar em sustentabilidade, especialmente para incluir os pequenos produtores na agenda.

“Sem título [da terra] não tem investimento, acesso a crédito, segurança jurídica e, muito menos, controle sobre o uso da terra”, disse a executiva. Comunicar o que já está sendo feito e o quanto a pecuária nacional é produtiva é outra necessidade, segundo ela. “Precisamos seguir mostrando como a agricultura e a pecuária são capazes de contribuir com as metas ambientais.”

Entrevistas

A seguir, leia os principais trechos das entrevistas com os especialistas.

Produtor rural e doutor em engenharia de produção, Pedro de Camargo Neto é membro do Conselho de Administração da BRF. Foi presidente de entidades de classe, como a Sociedade Rural Brasileira, e secretário de Produção e Comércio do Ministério da Agricultura.

Prática ESG: Por que a pecuária é alvo frequente de críticas na comunidade ESG?

Pedro de Camargo Neto: A pecuária não pode ser responsabilizada pelos desmatamentos. Para o pecuarista a expressão “passar a boiada” é trocar o gado de um pasto para outro e não atropelar o processo legal. A questão dos desmatamentos é criminal. Tem a ver com a sociedade brasileira como um todo. Começa com o garimpo ilegal, vai para a extração madeireira ilegal, grilo de terras públicas e o desmatamento ilegal. O criminoso joga uma semente de capim, chega o boi e a pecuária não pode levar a culpa. O pecuarista errou, e me excluo por não se posicionar com clareza contra a omissão dos poderes públicos nesse combate à criminalidade. O que ocorre com o desmatamento nada tem a ver com o setor da maneira como tem sido apresentado.

Prática ESG: O que o senhor achou da nova legislação da União Europeia que impõe regras mais rígidas para exportadores?

Camargo: Seria razoável uma legislação que exigisse que os produtos importados fossem “legais”, cumprissem a lei do país de origem, impedindo a entrada de produtos com questões fiscais, trabalhistas, contrabando, trabalho escravo e desmatamento ilegal. A legislação europeia vai além, pois inclui a data de 2020 para desmatamentos. Ou seja, mesmo que o desmatamento seja aprovado no Brasil dentro dos limites do Código Florestal, ele estaria impedido. Tudo começa com o combate à criminalidade, obrigação dos poderes públicos. É difícil o setor privado resolver tudo sozinho.

Prática ESG: Isso é ruim para o Brasil?

Camargo: A legislação interfere no que o Brasil produz mesmo de maneira legal, o que, a meu ver, tem viés colonialista e cunho protecionista. Caberá aos importadores exigirem as garantias que seguem a legislação europeia. E vale ressaltar que certificar a legalidade não é trivial, em especial porque estamos atrasados na validação dos CAR (Cadastro Ambiental Rural, registro de imóvel rural). É frágil falar que temos um Código Florestal com exigências superiores a grande maioria dos países, o que é verdade, se não estamos punindo ilegalidades, se estamos atrasados nos enquadramentos dos milhões de CARs. Para as dificuldades serem enfrentadas exigem, primeiro, credibilidade. Hoje cerca de 90% do desmatamento é ilegal. Com credibilidade conquistada, não será uma legislação de cunho protecionista que irá nos atrapalhar.

Prática ESG: Por que é tão difícil fazer o controle de toda a cadeia de fornecedores?

Camargo: A cadeia de produção da pecuária carrega uma dificuldade adicional, pois o bezerro nasce em uma propriedade e, em muitos casos, muda de propriedade e proprietário diversas vezes. Será necessário mostrar que ele nasceu em propriedade que tem CAR regular e que passou sempre por lugares também regulares. Não é trivial, porém já fizemos com sucesso para a questão da saúde animal com a certificação da Guia de Trânsito Animal e na exigência descabida da União Europeia para a Síndrome Espongiforme Bovina, doença da vaca louca, ao criar o Sisbov – Sistema de Identificação Individual de Bovinos. Atenderemos também a exigência de certificação ambiental, que começa colocando ordem na casa. Ilegal é ilegal. Vai ter que mudar, não somente por pressão da União Europeia. Eu, como brasileiro, quero morar em um país que as leis sejam cumpridas.

Prática ESG: A rastreabilidade, então, passa pela regularização fundiária?

Camargo: Ter 100% de rastreabilidade implicaria em ter 100% das propriedades regulares em termos fiscais, sanitários, ambientais e fundiários. Nos dois primeiros itens eu diria que estamos muito bem, a cadeia é regular em termos fiscais e sanitários, o gado é vacinado e circula com nota fiscal. O ambiental depende da validação dos CAR e aprovação de eventual regularização de pendências previstas no Código Florestal. Estamos atrasados. O fundiário no Centro-Oeste e Sul do país está OK, mas na Amazônia existe muito o que fazer.

Prática ESG: Quais as soluções que o senhor enxerga para a problemática?

Camargo: Tudo começa com o combate à criminalidade, obrigação dos poderes públicos. É muito difícil o setor privado resolver tudo sozinho, certificar uma cadeia de produção de longa duração. O primeiro passo é as certificações oficiais reconquistarem credibilidade. O CAR, por exemplo, que foi uma boa ideia do Código Florestal, embora aprovado no Congresso há dez anos, somente agora começa a entrar em sua fase de análise e enquadramento. A autodeclaração do proprietário exige a análise estadual e federal. A judicialização exacerbada e a lentidão do judiciário atrasam o processo. Um CAR regularizado é etapa fundamental. Estamos atrasados, mas vamos agora colocar foco e resolver.

Prática ESG: Dá para ser mais produtivo sem aumentar áreas para a agropecuária?

Camargo: O Brasil tem tudo para liderar a questão climática e produção de alimentos. Começa pela matriz energética mais limpa. Nossa agricultura e pecuária são modernas, com grande potencial para evoluir, reduzindo carbono, tornando-se mais regenerativa e ampliando a utilização de bioinsumos. Temos extensão territorial, água, luz, e potencial para avançar na tecnologia. Mas primeiro, precisamos por ordem na casa e deixar claro que ilegal é ilegal.

Teresa Vendramini é presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e membro do Conselho Consultivo da Amazônia.

Prática ESG: Pecuária é constantemente alvo de acusações como geradora de desmatamento ilegal. Por que ainda é uma grande problemática para a indústria?

Teresa Vendramini: A SRB e o agronegócio em geral são contrários a qualquer ação ilegal. Temos a mais rigorosa legislação ambiental do mundo, o Código Florestal. Cada produtor rural brasileiro preserva 20% da vegetação nativa da propriedade. A pecuária brasileira cresce em produtividade, em eficiência e na adoção de práticas cada vez mais sustentáveis. No Brasil a produção de carne avança 3% ao ano, enquanto o rebanho aumenta somente 0,87%. E continuará crescendo sem a necessidade de desmatar. Segundo a consultoria Athenagro, uma das principais do setor, incluindo toda a produção agrícola e pecuária, a produtividade média de cada hectare cultivado no Brasil será de 5,2 toneladas em 2022, o dobro das 2,6 toneladas por hectare registradas 20 anos atrás. Quer dizer, não é necessário multiplicar a área destinada à agricultura e à pecuária para seguir crescendo.

Prática ESG: Por que é difícil fazer uma rastreabilidade de 100% da cadeia de fornecedores?

Vendramini: Não adianta apenas desenvolver a tecnologia, é necessário que ela seja acessível a diferentes culturas, regiões e perfis de produtores rurais, especialmente os pequenos.

Prática ESG: Como a pecuária pode atacar este problema?

Vendramini: Muita coisa está sendo feita, como recuperação de pastagens degradadas. É um problema, mas os pecuaristas estão conscientes e trabalhando para isso. Há o avanço da ILPF, Integração Lavoura Pecuária Floresta, que aproveita ao máximo a capacidade produtiva de área, com práticas preservacionistas, que recuperam o solo ao longo do tempo, reduzem o uso de produtos químicos e de recursos naturais como a água, proporcionando maior bem estar animal e produtividade. É exemplo de sustentabilidade não apenas ambiental, mas também social e econômica, à medida que gera nova oportunidade de renda e de emprego no campo. Outro grande desafio é inserir o pequeno produtor neste processo de transformação, no universo da tecnologia, sustentabilidade e ESG. É necessário que ela (tecnologia) seja acessível a diferentes culturas, regiões e perfis de produtores rurais.

Prática ESG: Como engajar os pequenos fornecedores?

Vendramini: Primeiro passo, é a regularização fundiária. Esses pequenos produtores, especialmente na Amazônia, não possuem o título de suas terras. Sem título não tem investimento, acesso a crédito, segurança jurídica e, muito menos, controle sobre o uso da terra. Visitei uma bacia leiteira no Pará, só de pequenas propriedades, que passavam por isso. Além disso, a regularização fundiária combate a grilagem de terras na Amazônia pois impõe uma série de travas a crimes ambientais. O segundo passo, é acesso a crédito e extensão rural. Precisamos incluir os pequenos produtores nesta revolução que a ciência e a tecnologia fizeram pelo agronegócio brasileiro. E nunca esquecer: esses produtores trabalham para sustentar suas famílias, portanto, toda solução tem que ser viável economicamente.

Prática ESG: A União Europeia aprovou uma regra para impedir a compra de produtos que tenham alguma ligação com desmatamento. Qual sua opinião sobre a lei e como pode impactar a pecuária?

Vendramini: Não considero justa, mas já era uma ação que se vislumbrava de um tempo para cá. As cobranças ambientais sobre o agronegócio brasileiro já estão chegando e o nosso trabalho é nos organizarmos cada vez mais e mostrarmos ao mundo nosso desenvolvimento ambiental. Temos que continuar avançando e precisamos investir mais na comunicação do agronegócio. Mostrar o trabalho realizado pelos pecuaristas e pela indústria no Brasil, além de rever as regras de mensuração internacional, que não levam em conta as características de uma agropecuária feita em um ambiente tropical, por exemplo.

Prática ESG: Onde estão as soluções para a pecuária ser e mostrar que é sustentável?

Vendramini: A agropecuária tem diversas formas de reduzir seu impacto ambiental e suas emissões de gases que causam o efeito estufa, um deles é com o uso mais eficiente de fertilizantes, por exemplo. Cada vez mais se usa a fixação biológica de nitrogênio, uma tecnologia que reduz esse impacto. Outro ponto importante é a restauração de áreas com florestas, que equilibra as emissões ao sequestrar carbono. Experimento da Embrapa Pecuária Sudeste, por exemplo, demonstrou que um sistema de média lotação, de 3,3 unidades animais (UA) por hectare, onde se recuperou a pastagem degradada, foi capaz de neutralizar as emissões de gases de efeito estufa de bovinos e ainda gerar créditos de carbono correspondentes ao produzido por seis árvores de eucalipto. É algo muito relevante, que precisa ser divulgado e disseminado não só no campo, mas para a sociedade. Precisamos seguir mostrando como a agricultura e a pecuária são capazes de contribuir com as metas ambientais.

Prática ESG: Como resolver a questão de alimentar a população de mais de 8 bilhões de pessoas sendo sustentável?

Vendramini: A tecnologia e a ciência são os caminhos para um agronegócio mais sustentável e competitivo. Tem sido assim ao longo da história. O Brasil é o maior produtor mundial de grãos usando apenas 7,80% do território brasileiro graças à pesquisa e à ciência, que possibilitaram produzir mais na mesma área. Existe espaço para todos os produtores rurais no agronegócio, do pequeno ao grande; só é preciso um ambiente de negócio amistoso, com geração de renda e que mantenha o produto brasileiro competitivo tanto no mercado interno como externo.

Fonte: Valor